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La Grande beuverie

René Daumal – Os paraísos artificiais (2.17)

Parte II Les paradis artificiels

terça-feira 1º de julho de 2025

Os Fabricantes de discursos inúteis formam três clãs principais, o dos Pwatts, o dos Ruminssiés e o dos Iiirittiks. Traduzidos para o português, esses nomes significam respectivamente: “mentirosos em cadência”, “mercadores de fantasmas” e “catadores de migalhas”.

Os Pwatts se dizem descendentes dos bardos, aedos e trovadores de outrora. “Mas,” explicou-me um deles, um homem grande, lunar, agitado e desgrenhado, que encontramos sentado à mesa em uma leiteria, “por maior respeito que professemos pelos ancestrais de nossa corporação, não deixamos de romper com o baixo utilitarismo de seu ofício. Serviam poesia como se servem refeições, temperando a comida ao gosto de cada um. Queriam edificar, instruir ou agradar, e o faziam bem.

“Miramos mais alto. Nossa tarefa é transmutar as palavras grosseiras do dia a dia em uma linguagem que não seja deste mundo, que não esteja sujeita ao útil nem ao agradável. Nossos antepassados falavam e cantavam, mas muitos desdenhavam escrever. Acreditavam que a escrita era feita apenas para anotar posteriormente os poemas que haviam composto, ou para conservar os temas gerais e os argumentos sobre os quais improvisariam. Assim, de sua obra efêmera, restava apenas o esqueleto. Nós, não falamos, escrevemos. E nossas obras, guardadas em sólidas bibliotecas, desafiam os séculos. Ao mesmo tempo, que liberdade ganhamos! Não há mais ouvintes incômodos cujo capricho ou estupidez nos imporia a falar de outra forma ou mais claramente do que gostaríamos. Não há mais responsabilidades que cortariam as asas de nossa inspiração. Não há mais limites de tempo também; levamos dez minutos ou seis meses para produzir um poema, como agrada ao nosso lirismo.

Lirismo? Não conhecia essa palavra. Consultei o dicionário de bolso e li:

Lirismo, subs. masc., desregulação crônica da hierarquia interna de um indivíduo, que se manifesta periodicamente naquele que dela padece por uma necessidade irresistível, dita inspiração, de proferir discursos inúteis e cadenciados. Nada tem em comum com o que os antigos chamavam lirismo, que era a arte de fazer a lira humana cantar previamente afinada por um longo e paciente trabalho.

O Pwatt continuava:

— Nós, Pwatts, estamos divididos em dois subclãs: o dos Pwatts passivos e o dos Pwatts ativos. Os primeiros são certamente os melhores, e estou bem posicionado para falar sobre eles, pois sou unanimemente considerado o seu representante mais brilhante. São questões de métodos que nos separam. Quase não nos frequentamos. Nós, Pwatts passivos, praticamos assim:

“Espera-se primeiro que se produza um estado de mal-estar particular, que é a primeira fase da inspiração, dita ‘vague à l’âme’. Às vezes, pode-se ajudar esse mal-estar a se manifestar comendo demais, ou de menos; ou então, pede-se a um camarada para insultar grosseiramente em público e foge-se, repetindo-se interiormente o que se teria feito se fosse mais corajoso; ou então, deixa-se ser enganado pela esposa, ou perde-se a carteira, sempre sem se permitir ter reações normais e utilitárias. Os processos variam ao infinito.

“Então, se fecha no quarto, pega a cabeça com as duas mãos e começa a berrar até que, de tanto berrar, uma palavra chegue à garganta. Ela é expectorada e colocada por escrito. Se for um substantivo, recomeça-se a berrar até que venha um adjetivo ou um verbo, depois um atributo ou um complemento, e assim por diante, mas tudo isso é feito de forma instintiva. Sobretudo, não pensar no que se quer dizer, ou, melhor ainda, não querer dizer nada, mas deixar que se diga por meio do que quer se dizer. Chamamos isso de delírio poético, que é a segunda fase da inspiração, e cuja duração é muito variável.

“A terceira fase é a mais difícil, mas não é absolutamente necessária. É aquela em que se retoma o que se escreveu para suprimir ou modificar tudo o que pudesse oferecer um sentido muito claro e tudo o que mais ou menos se assemelha ao que outros já publicaram. Por causa dos movimentos respiratórios aos quais se submeteu no momento do delírio poético, as palavras que se alinham naturalmente possuem uma cadência que lhes dá direito ao título de «poesia».

“Quer um exemplo?

— Não, obrigado, disse o enfermeiro. E me puxou enquanto o homem grande, mesmo assim, tirava um grosso manuscrito do bolso e começava a ler para o nada.


Ver online : DAUMAL, René. La grande beuverie. Éd. nouvelle ed. Paris: Gallimard, 1994


DAUMAL, René. La grande beuverie. Éd. nouvelle ed. Paris: Gallimard, 1994