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Essais et Notes I (1926-1934)

René Daumal – A Vida dos Basiles

La vie des Basiles (1935)

segunda-feira 30 de junho de 2025

 Os decepados.

Há nas lendas tibetanas um monstro singularmente aterrador. A boca enche-se de um bloco de sal ao ler sobre ele. Essa criatura, larva ou demônio, tem em conjunto figura humana. De longe, poder-se-ia confundir com um viajante perdido ou um sonâmbulo. Mas quando se aproxima, vê-se que a cabeça, os membros e o tronco estão seccionados. Os pedaços permanecem aproximadamente no lugar, flutuando no ar, mal reunidos por filamentos muito tênues. O pior, o imperdoável, é que esse horror quer viver e sofre; esses fragmentos humanos vêm ao encontro, pedem para beber, para comer. Mas só se sente um medo e nojo sem fundo. Percebe-se o perigo de contágio. Sente-se no íntimo que se poderia tornar uma dessas larvas. E, por medo, odeia-se.

Contos de velhas! Nós, espíritos cultos, libertos das trevas da superstição, sabemos muito bem que o homem, essa maravilha da criação, é um todo harmônico e homogêneo; que somos pequenas repúblicas ambulantes e admiravelmente organizadas; que cada um é um indivíduo único em seu gênero; enfim, que podemos dormir tranquilos, e repelir para longe essas fantasias mórbidas de povos ignorantes.

Pois não! Esses monstros em pedaços, olhem, a rua está cheia deles. Olhem-nos, e sobretudo olhemo-nos. Todos, mais ou menos, assemelhamo-nos a esses decepados. Naquele ali, o coração tem razões que a razão desconhece, a cabeça tem fome quando a barriga está saciada, o intelecto desgasta-se em círculos viciosos enquanto o corpo decapitado cuida das necessidades cotidianas. E cada um, à sua maneira da qual muitas vezes se orgulha, está assim dividido em pedaços mal unidos pelos tênues filamentos de uma função social ou de um obscuro desejo animal de viver.

Feliz povo, ainda que tibetano, se para ele esses monstros são criaturas de exceção e fábula! Entre nós, pelo contrário, é o homem coerente, de um bloco só, que causaria espanto, desarmonia e estampido. Olhem bem, e só verão multidões de fantasmas esquartejados, que sofrem, e que são nossos irmãos.

 Basile.

No entanto, esse decepado nem sempre se desintegra completamente. Vê-se, durante anos, manter uma espécie de individualidade. O que une os pedaços? O que faz com que, lembrando-se de ter nadado ou bebido água fresca, de ter sentido medo ou raiva, de ter lido um livro ou contado os pregos de uma porta, afirme-se que fui eu quem fez ou sofreu essas ações ou paixões sem medida comum entre si? Quem em mim proclama, sem rir, esses trocadilhos contínuos do tipo: "odeio este poema" e "odeio ris de veau"? Quem é o agente de ligação?

É um tal Basile. O homem o criou à sua imagem, a menos que não seja o contrário. Mas não é maior que uma pulga, ou, mais proverbialmente, que um ácaro, de modo que no corpo humano onde reside só pode estar num lugar de cada vez.

 Patafísica de Basile.

Basile escapou até agora à mais aguda investigação científica. Eis por quê. No sujeito vivo, é altamente improvável - mesmo se, negando-lhe qualquer iniciativa, quiserem que esteja submetido apenas às leis estatísticas da moda - é quase impossível, portanto, que se encontre no mesmo momento, no local exato onde o cientista olhará. Além disso, ao exame radiográfico, mesmo com os mais modernos meios de exploração das chapas, mal se distinguiria de um coágulo de sangue ou de uma minúscula concreção; ainda é duvidoso que seja opaco aos raios X, e enfim sua extrema mobilidade impede qualquer fotografia. No cadáver, é intransponível. Se, no momento da morte, se dissolve ou se esvai, e para qual refúgio, ninguém ainda sabe, ele mesmo tampouco, ao que parece.

Mas nós que praticamos o método patafísico dito experimentação pelo absurdo, declaramos: se negarem Basile, Basile os negará. E arriscarão despedaçar-se por completo.

 Aspectos de Basile.

Embora mantenha sua forma humana geral, Basile tende muito a assumir a forma da parte do corpo onde se encontra num momento particular. No crânio, torna-se macrocéfalo; na barriga, pançudo; nas mãos, com garras ou mesmo tentacular, e assim por diante. Mas como geralmente tem seu lugar predileto, adquire pouco a pouco uma deformação persistente. Em troca, essa deformação torna realmente incômodos os outros lugares, e muitas vezes tem toda a dificuldade para deixar a morada onde se incrustou e moldou; e se por vezes faz excursões tímidas, sempre volta ao seu ninho para repousar e alimentar-se.

É assim que os Basiles - nossos queridos Basiles - se diferenciam uns dos outros. E, grosso modo, podem ser classificados em três categorias, conforme sua conformação e habitat:

os Basiles Pançudos,

os Basiles Torsos,

e os Basiles Cabeçudos.

Os primeiros são muito semelhantes ao Pai Ubu, ou, numa ordem de grandeza mais próxima da realidade, à pulga bem alimentada, ao carrapato chamado piolho-de-madeira ou à bicheira tropical após algumas semanas de incrustação numa derme bem irrigada. Sua cabeça ínfima tem a dureza quitinosa da do verme branco, e está subordinada à mesma função ventral; mas ao contrário do futuro besouro, não é com um objetivo, nem mesmo inconsciente, de metamorfose. Outras variedades, muito comuns, são parecidas com egipans, sátiros, faunos ou capricórnios, sem os chifres. Outras combinam a dríade e o ubu sem alcançar a serenidade do cinocéfalo egípcio. Mas para que enumerar o que todos veem passar diante dos olhos todos os dias?

Os Basiles Torsos assemelham-se frequentemente a pombos, pavões, galos, a toda sorte de aves, sobretudo daquelas que empinam o peito e inflam um vasto papo; como elas, podem viver bastante tempo, e sem aparência de distúrbios excessivos, quando lhes são removidos os hemisférios cerebrais. Outros são leoninos, prontos a golpear ou lamber, e Sócrates já dizia com que precauções se poderia fazer deles "bons cães de guarda". Encontram-se os Basiles Torsos entre, por exemplo, os militares de vocação e as almas apostólicas; e, afetados por certas doenças de languidez, entre muitos poetas líricos.

Os Basiles Cabeçudos, enfim, têm, como o nome indica, aparência de girinos. Habitam a maioria dos representantes das Inteligências. Se alguma vez transpõem a garganta que separa sua morada das outras regiões, podem semear grandes desordens; como aliás qualquer espécie de Basile que se aventure fora de seu lugar de adoção.

(No entanto terás que sair, Basile, sairás, Basile, sairás desse buraco.)

 Linguagem dos Basiles.

Todos esses Basiles, por mais dessemelhantes que sejam e onde quer que se encontrem, empregam a mesma linguagem. Mas cada um a entende à sua maneira; daí mal-entendidos e confusões; e, longe de fazer um Pentecostes, essa ambiguidade linguística resulta antes numa Babel. Um dia, no café, ouvi três Basiles - um Pançudo, um Torso e um Cabeçudo, precisamente - escondidos em três personagens de aparência humana, três bons amigos, e falavam por suas bocas. Tinham concordado nessa afirmação máxima de que "a busca e o amor da verdade devem dirigir toda sua conduta". Era linguagem de Basile. E, assim como em grego se ouve de modo bem diferente do francês o trava-língua: "où qu’est la bonne Pauline...", assim era preciso traduzir as palavras dos Basiles, em linguagem cristã:

(Basile Cabeçudo, em língua Bárbara): "Quod est verum, hoc est desirabile. Mea autem propositio est vera. Ergo propositio mea est desirabilis. Sim, mas não se pode desejar o que já se possui. Ergo ou minha proposição não é minha, ou é falsa. Mas chega de pensar, a lógica nos tirará do apuro."

(Basile Torso, em bom francês): "Amor sagrado da Pátria!"

(Basile Pançudo, em língua perita): "Adoro chouriço."

Como era hora do jantar, foi o último que deu mais peso às suas palavras. E enquanto se abraçavam (estavam no quinto pernod), por amor da verdade e da pátria, foram comer chouriço, e outras coisas. Os três Basiles instalaram-se em seus respectivos estômagos. Então a comunhão das barrigas estava cumprida, eram irmãos. Depois das licores, Basile Cabeçudo subiu para seu crânio. Estava com sono, e só dormia bem naquele lugar. Perto da famosa segunda circunvolução frontal esquerda, enredou-se nas dobras de uma faixa onde leu, por acaso: "A Ciência não tem Pátria." Puxando-a, desencadeou, talvez sem querer, o mecanismo vocal de seu homem que proferiu: "A Ciência não tem Pátria."

Basile Torso, que tinha subido para sestear em seu mediastino, ouviu e replicou: "Eu, meu caro, fiz a guerra, saiba bem, e..." estava lançado, e continuou até o rubro. Basile Pançudo, preocupado com sua digestão, fez dizer por seu homem que queria "a paz". Foi chamado de pacifista e derrotista por Basile Torso, enquanto o Cabeçudo os acusava de serem "espíritos primários". Estavam prestes (não os Basiles, mas seus homens) a chegar às vias de fato, quando gritaram: Fogo! Os três Basiles desceram rapidamente para as nádegas, instalaram-se nos postos de comando das patas traseiras e puseram-nas a funcionar. O entendimento voltara, pela comunhão das pernas e do fogo no traseiro, como se vê lobos e corças fugirem lado a lado de uma floresta em chamas.

 A consciência de Basile.

É uma consciência frágil, vacilante e vagabunda. Um pobre clarão de vaga-lume que mal consegue aquecer o pequeno canto de homem onde se apegou. Uma chama débil e sujeita a todos os ventos de fora; por vezes o sopro de uma palavra, de uma forma que passa a reaviva por um instante. Mas incapaz de encontrar em si combustível suficiente, quando nenhuma brisa exterior sopra, bastante forte para reavivá-la sem ser bastante violenta para apagá-la, arrasta-se e definha tão pálida e lenta que, sem sua mobilidade, seria tomada por um mofo. Por vezes, porém, acontece isto.

Seria preciso aqui a grande trombeta do Juízo, seria preciso pôr em movimento todos os céus como sinos para anunciar a aproximação do milagre, tocar por muito tempo que os mundos se preparam para ver, e depois silêncio! e olhem pela porta real; eis o grande golpe de teatro.

Basile lembra-se que seu nome vem do grego e significa rei, ou pelo menos real. E que "tudo será perdoado ao homem, exceto esquecer que é filho de rei".

Basile despertado subitamente - deve ter levado uma boa pancada na cabeça, ou algo assim - Basile vê-se disforme, macrocéfalo, corcunda, obeso ou sem pernas. Pobre rei! e infeliz reino! As terras, negligenciadas ou entregues a uma indústria ávida, produzem demais aqui, e de menos ali. Feras devastam os rebanhos, colheitas apodrecem, porque o rei, impelido pela ambição de um coração excessivo, guerreava lá fora; ou porque passava o tempo em banquetes e devassidão; ou os bárbaros oprimem seu povo porque só sonhava com as estrelas nos terraços do palácio. Triste palácio! Por toda parte, desordem e injustiça. Basile despertado força-se a sair dos aposentos - harém, sala de jantar ou observatório - onde se confinara por tanto tempo. Visita sua morada de porão a sótão. Percorre toda essa massa movediça e laboriosa de carnes, ossos, pele, sangue, nervos; esses pés, essas mãos, essa boca e as janelas abertas para o exterior. Inspeciona seus súditos, interroga-os sobre seus desejos; têm fome, e de quê? De pão, de imagens, de pensamentos? Por toda parte encontra salas entulhadas de móveis inúteis, latas de lixo não esvaziadas, teias de aranha e jornais velhos. Será preciso desobstruir e limpar aqui, encher e reconstruir ali. Demolir esses velhos andaimes carcomidos, feitos de mínimo esforço, amor-próprio, tagarelice e revestidos de papelão pintado, e reedificar. Basile, rei, essa morada viva de carne é tua Basílica. Nas criptas de tua Basílica, Basile, vive teu inimigo o Basilisco. Durante anos, por tua preguiça, deixaste que se engordasse de tua substância, e até roubou teu nome. É uma hidra multiforme cujo olhar transforma tudo em pedra. Sob o olhar do Basilisco, os apetites tornam-se manias, os desejos vícios, os pensamentos silogismos, e a casa viva do homem torna-se um duro túmulo.

Basile lança chamas, desfere raios e espalha por toda parte um líquido inflamável, esplendor mortal para o Basilisco que responde com fluxos de veneno. A guerra será longa.

Basile reedifica sua Basílica. Não sabe se viverá o bastante para levar sua obra a bom termo. Mas não quer mais cair em sua incuria, e não é por gosto dessa vida que deseja viver cem anos.

 O Imenso Minúsculo.

Num sótão, Basile reencontrou alguns livros empoeirados que por exceção não queimara. Extraordinariamente, as palavras estavam combinadas de tal modo que só tinham sentido para ele, Basile, para o próprio centro do Basile despertado. Para a cabeça só, para o tórax só, para a barriga só, não passam de palavras insanas, desconcertantes e enfadonhas. Num desses livros, por exemplo, leu:

"Neste corpo, cidadela do Proferador, um pequeno cálice, uma morada. Dentro, um pequeno espaço. O que há lá dentro, é isso que é preciso buscar, sim, é isso que é preciso querer conhecer... Tão vasto quanto o espaço estendido fora de nós, tão vasto é esse espaço dentro do coração. Céu e Terra ali se reúnem, Fogo e Vento, Sol e Lua, Relâmpago e Estrelas, tudo o que se tem e tudo o que não se tem aqui abaixo, tudo ali se reúne... Esse ser dentro de meu coração é menor que um grão de arroz, que um grão de cevada, que um grão de mostarda, que um grão de milho, que o germe de um grão de milho. Esse ser dentro de meu coração é maior que a Terra, maior que a Atmosfera, maior que o Céu luminoso, maior que todos os mundos... Esse minúsculo, é a essência vital de todas as coisas; é o ser real; é o si mesmo: tu és isso!..."

Basile compreendeu que se tratava dele, que ainda não era. O livro chamava-se Ensinamento para os Cantores de Rítmos, e se vinha da estrela Sirius, da Bélgica ou da Papuásia, Basile pouco se importava.

 Os tormentos de Basile Cabeçudo.

Falarei dos tormentos dos Basiles Cabeçudos, não que os outros sejam menos dignos de interesse, longe disso. Mas como Basile Leitor e Basile Autor pertencem provavelmente à categoria cabeçuda, terão mais chances de se entender nesse terreno de matéria cinzenta. No entanto, ou melhor, portanto, essa esperança é toda teórica; e é um tanto às cegas que esses dois Basiles, por meio muitas vezes ilusório de sinais tipográficos, tentam se tocar.

Basile Fismático, tendo desintegrado o átomo, quebrado sucessivamente seus elétrons, íons, nêutrons e dêuterons, atola-se num magma de corpúsculos ondulatórios, grãos de energia, quanta inapreensíveis entregues às leis do cara-ou-coroa. Os limites de seu universo afastam-se dele a uma velocidade que nem sequer é constante. As boas e velhas muletas euclidianas e mecanicistas o abandonam, e não encontra outros suportes. Basile Filósofo é incapaz de fornecê-los, como seria seu dever; está inteiramente embrutecido pela busca do "concreto", como diz para designar a mais abstrata das abstrações filosóficas; espera que, berrando e clangorando: concreto! concreto! concreto! vá realmente criar ou encontrar ou compreender uma coisa ou um fato real, plenamente real. Uma de suas últimas descobertas foi descrever "o conteúdo vivido" de suas operações mentais; um dia desses, aviso-o, perceberá que não é o conteúdo mas o continente que vive, que fabrica o conteúdo como num molde. Mas esquecerá ainda que a cabeça do Cabeçudo deve aperfeiçoar o resto do corpo antes que o animal adulto possa conter, compreender, guardar e palpar nas palmas interiores a menor realidade viva. Enquanto isso, continua a esvaziar de todo conteúdo as palavras de real, de vida, de concreto, como todas as outras que passam por sua boca, pela virtude da repetição mecânica, como cada um pode experimentar. Se as palavras são balas, Filósofo atira a seco. Basile Lartisse, ele, tem um pequeno sorriso de superioridade. Ao menos, manuseia matéria. Diz que a época não é mais de diarreias líricas (boa notícia, em todo caso), e que tem um ofício, ideias, sentimentos e tudo. Mas se perguntarem o que faz com isso, e por quê? - mas perguntem-lhe a sós, uma faca na garganta para fazer engolir as respostas prontas e papagueadas - então ver-se-á fazer uma cara de baleia, ou de caracol a quem se faz uma pergunta incômoda; ou então confessará preocupações que nada têm a ver com a edificação da Basílica.

Os mais vivazes dos Basiles de cabeça grande concordam nisto: estão presos em círculos viciosos; não têm mais do mundo uma visão firme que possa dirigir sua vida; não têm mais contato com os outros Basiles, com Basile Todo-mundo, Basile da Rua, Basile da Terra, Basile da Fábrica, - nem com seus próprios corpos, nem com suas próprias vidas.

 Prosopopeia de um Basile.

"Lamento", disse de repente Basile Egomet cortando-me a palavra, "falar na primeira pessoa. É um mal menor. Eis minha história. Uma infância sem fé religiosa pôs-me prematuramente diante do medo da morte; era uma contração do ventre, como acabei por ver, que um simples relaxamento dos músculos abdominais podia fazer desaparecer. Assim me libertei desse medo de ventre, mas a contração subiu para o peito sob forma de um nó de angústia; a mesma constatação e a mesma operação de relaxamento fizeram dissolver esse medo de garganta. E a contração subiu para o cérebro sob forma do problema: ser ou não ser. Questão repetida, mas raramente pensada. Essa contração repetiu-se pois em meu cérebro, e ali permaneceu durante longos anos. Proliferou em especulações metafísicas que quase viraram decapitação completa. Tenho ainda a cabeça congestionada, mas tive sorte que talvez me permita tirar proveito disso.

"Busquei a resposta à questão que não se formula entre os filósofos, depois entre os sábios e nos grandes escritos não assinados por nomes de homens. Encontrei mitos e álgebras de dois gumes. Podia-se usá-los para embalar uma doce sonolência, cheia de belos sonhos, de amanhãs, de isso-basta; mas também para constatar que nada se compreendera hoje, e tentar compreendê-los de outro modo. É esse outro modo que me pus a buscar - nos raros momentos em que estava ativo."

 Segredos profissionais.

Prosseguiu: "Acreditei por algum tempo que a atividade poética, como fazia dizer ao meu homem, pondo em jogo o todo do homem, bastaria para minha vida. Tive de desencantar, é o caso de dizê-lo. Estou bem colocado para dizer aqui, e tanto pior se traio a confraria, que o exercício literário chamado hoje ’poesia’ é feito em nove décimos e mais de blefe descarado, mascarada, ignorância de tudo (da linguagem, do peso e da vida das palavras e imagens, e das ideias se as há; do ofício, dos meios; e sobretudo do fim), irresponsabilidade, vaidade, amor-próprio de dez milhões de dobras, e preguiça; isto é, feito de nadas multiformes, ausências, vazios velados por vagos miragens. Senão, sim, seria um caminho possível. Seria mesmo o único caminho, mas não seria mais um exercício literário."

Da República.

"Nas coisas públicas, não fui longe. O mesmo decepamento que constatava no indivíduo, reencontrava-o na sociedade, com tudo o que acarreta de plétoras e carências, de degenerescência dos privilegiados e exploradores, e aviltamento dos explorados e famintos. Esperei encontrar um contato com a massa humana. Acreditei primeiro que as relações eram falseadas pelos intermediários (criaturas e criações cabeçudas ainda) que quis utilizar. Não, é em mim, como em cada um de nós, que as relações estavam falseadas. O contato deverá refazer-se um dia, mas, também, de outro modo que por meios de cabeça; nesse dia, fará barulho."

 Encontros.

"Era preciso pois limpar a Basílica, jogar fora os livros inúteis e tentar ajeitar-se. Mas como? Com esse: é preciso... é preciso... poderia ficar anos, toda uma vida, uma vida vã, uma vida de se... e de amanhã..., uma vida no futuro e no condicional.

"Encontrei um ser humano. Não teria acreditado possível. E no entanto tive de abandonar desesperos bem cômodos. É a esperança que é pesada de carregar.

"Um pouco mais tarde, noutra parte do mundo - as viagens provocam esses encontros quando não é para escapar que se viaja - encontrei o personagem que leva meu nome: uma pasta psíquica encerrada numa pele humana, onde flutuavam vários pedaços de materiais diversos, alguns ainda utilizáveis, alguns bastante preciosos, e muitos a substituir completamente.

"Se dissesse que depois ainda encontrei um ser humano, diriam que faço romance-folhetim. Não falarei pois disso. Direi apenas o fato: numa pequena cidade da Europa, alguém organiza encontros entre os Basiles e seus homens; não sei o que fazem lá, os outros, é problema deles. Para mim, Basile, encontro ali meu homem; temos frequentemente, ele e eu, curiosas surpresas. Como nos conhecíamos mal, nós que nos julgávamos velhos camaradas! Refaz-se o conhecimento, tiram-se as máscaras, uma a uma, e não se está perto de ter acabado! Discute-se e reconcilia-se. Dirão que falo como bêbado, ao falar assim de coisa tão simples. É simples, mas essa palavra é mais pesada de aguentar do que se pensa." Basile calou-se bruscamente, bateu-me duramente na boca dizendo secamente: "Chega, tagarela!"

(No entanto era ele quem falava? E sou eu que acusa de tagarelar. Que injustiça!)


Ver online : DAUMAL, René. Essais et notes I. L’Évidence absurde: 1926-1934. Paris: Gallimard, 1993


DAUMAL, René. Essais et notes I. L’Évidence absurde: 1926-1934. Paris: Gallimard, 1993