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A ciência dos símbolos
René Alleau – Sinal e Símbolo
A Problemática do Símbolo
A CRÍTICA ÀS DEFINIÇÕES CLÁSSICAS E A INSUFICIÊNCIA DA SEMIOLOGIA LINGUÍSTICA
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As definições tradicionais de símbolo, tais como as apresentadas por Lalande no Vocabulaire technique et critique de la philosophie, oscilam entre a noção de sinal de reconhecimento material, composto por metades de um objeto partido, e a de representação analógica capaz de evocar uma relação entre uma imagem concreta e uma ideia abstrata, como o cetro para a realeza, ou ainda a de simples convenção arbitrária utilizada por lógicos e matemáticos, o que demonstra uma imprecisão terminológica que serviu de base para Ferdinand de Saussure conceber a língua como um sistema de signos comparável à escrita e aos rituais simbólicos, subordinando a simbólica a uma ciência geral dos sinais denominada semiologia, do grego semeion.
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A premissa semiológica de que as formas explícitas do simbolismo operam como significantes associados a significados tácitos, obedecendo ao modelo linguístico das relações entre som e sentido, conduziu a interpretações reducionistas como a de Claude Lévi-Strauss, que estendeu o método da antropologia estrutural à religião e à arte na tentativa de decifrar os símbolos integrando-os nos sistemas culturais, uma abordagem que, contudo, falha em explicar a complexidade genética e a profundidade semântica do verdadeiro significado simbólico ao tratar o símbolo como um mero elemento de comunicação cifrada.
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O próprio projeto semiológico de Saussure encerra contradições internas fundamentais, pois ao definir o signo linguístico como uma união arbitrária e linear entre um conceito e uma imagem acústica, ele admite posteriormente que o termo símbolo é inadequado para designar o signo linguístico justamente por nunca ser completamente arbitrário e manter um rudimento de laço natural com a realidade representada, como a balança que simboliza a justiça e não poderia ser substituída por um carro, o que revela a oscilação do pensamento saussuriano entre a convenção pura e o vínculo motivado.
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A distinção clássica entre língua e fala, situada historicamente no contexto do positivismo universitário e das tensões sociológicas entre Durkheim e Tarde, estabelece a língua como um produto social registrado passivamente e a fala como um ato individual de execução, mas essa dicotomia, juntamente com a separação entre sincronia e diacronia, ao ser aplicada aos rituais e costumes simbólicos, impõe uma grade de leitura racionalista que ignora a natureza específica da experiência sagrada, tratando-a como um sistema de signos arbitrários onde não haveria motivo intrínseco para preferir uma forma a outra, tal como não há motivo linguístico para preferir soeur a sister.
A PROPOSTA DA SINTEMÁTICA E A DISTINÇÃO ENTRE SINAL E SÍMBOLO
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Diante da confusão terminológica que leva lógicos e matemáticos a falarem indevidamente em lógica simbólica para descreverem sistemas puramente convencionais e ideográficos, impõe-se a necessidade de adotar o termo sintema, derivado do grego synthema (do verbo sundesmeo, ligar em conjunto), para designar especificamente todo sinal arbitrário cujo sentido unívoco é fixado voluntariamente por uma convenção explícita entre as partes, distinguindo-o radicalmente do símbolo que, conforme observa Jean Piaget, pressupõe um laço de semelhança motivado entre significante e significado e pode ser elaborado individualmente antes de ser socializado.
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A confusão entre a ordem do sintema e a ordem do símbolo resulta numa extensão injustificável de sentido que obscurece a compreensão dos fenômenos, exigindo o estabelecimento de uma disciplina nova, a sintemática, distinta tanto da simbólica quanto da linguística, capaz de analisar os sinais convencionais sem os confundir com as estruturas analógicas e vivas do simbolismo, evitando assim os erros de categorização que assolam as ciências humanas ao tratarem realidades distintas sob a mesma nomenclatura de signo.
O ESTRUTURALISMO E A REDUÇÃO DO MYTHOS AO LOGOS
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A abordagem antropológica estruturalista, ao situar os símbolos no universo do discurso e compará-los a uma linguagem sociocultural, incorre no risco de não diferenciar os rituais religiosos e os mitos de meros sinais profanos como as fórmulas de cortesia ou os sinais militares, repetindo o movimento histórico de redução do mythos ao logos iniciado na civilização helenística por críticos racionalistas como Xenófanes, Tucídides e os oradores alexandrinos, que tratavam o mito como fabulação sem prova ou alegoria humana, uma tendência de dessacralização que caracteriza a civilização moderna marcada pela tradição escrita e pelo racionalismo.
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A observação de Mircea Eliade de que não dispomos de mitos gregos em seu contexto cultual vivo, mas apenas como documentos literários, alerta para o perigo de analisar o simbolismo exclusivamente como um fato cultural ou um sistema de pensamento, ignorando que nas sociedades tradicionais o símbolo é a expressão de uma experiência do Sagrado ou do Numinoso, ou seja, do Totalmente Outro, que constitui um sistema irredutível aos mecanismos linguísticos e aos conceitos da lógica profana.
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A ciência dos símbolos diferencia-se da antropologia estrutural porque não se contenta em descrever o funcionamento mecânico de uma estrutura ou o seu dispositivo de comunicação, mas busca compreender a sua gênese existencial e a formação do processo de simbolização, recusando-se a projetar os códigos culturais e os conceitos econômicos modernos sobre as realidades das civilizações arcaicas, tal como Karl Polanyi demonstrou ser errôneo aplicar as noções de mercado capitalista à economia da Mesopotâmia antiga.
A ORIGEM NÃO-HUMANA E A CONDUTA DE INTENÇÃO NOS RITUAIS
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Nas sociedades primitivas e tradicionais, prevalece a convicção de que os símbolos e rituais possuem uma origem não-humana, derivando de seres divinos ou antepassados míticos, e que a sua função não é representar alegoricamente o mundo, mas reatualizar dinamicamente uma ordem primordial e trans-histórica, permitindo que a imitação dos gestos exemplares dos deuses transforme o caos em cosmos e aniquile as dúvidas humanas quanto ao resultado das ações, estabelecendo uma comunicação que não é uma conduta de relato, mas uma conduta de intenção orientada para o sagrado.
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A natureza da comunicação simbólica arcaica aproxima-se mais dos fenômenos etológicos de comunicação animal, como a dança das abelhas ou a linguagem de humor das gralhas descrita por Lorenz, do que do discurso conceptual humano, pois envolve uma estimulação progressiva e uma tensão coletiva orientada para a ação e para a unanimidade, onde o símbolo atua como um vetor de orientação analógica e um campo de magnetização que acumula imagens e cargas afetivas, confirmando a intuição de Jâmblico de que a alma é constituída para entender simbolicamente o que lhe é apresentado de forma simbólica.
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O simbolismo não opera pela lógica da identidade e da abstração, mas pela lógica da analogia e da participação, caracterizada pelo arcaísmo concreto e pela organização temática inconsciente, capaz de projetar cargas emocionais sobre os objetos da experiência existencial e de ligar o humano não apenas ao supra-humano, mas também ao infra-humano, através de rituais mágicos que buscam a apropriação de poderes vitais e que podem envolver a violação de interditos e a assimilação de comportamentos animais, como nas sociedades de homens-pantera.
A EXPERIÊNCIA DO NUMINOSO E O TERROR MÍSTICO
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A abertura do humano ao não-humano através do símbolo não deve ser idealizada como uma harmonia bucólica, pois implica frequentemente uma dimensão trágica e terrível, onde a tortura, o sacrifício e a morte violenta adquirem valor religioso e são decalcados sobre modelos trans-humanos, manifestando o aspecto de terror místico analisado por Rudolf Otto, onde o sagrado se revela como o mysterium tremendum capaz de paralisar o homem com um horror espectral que nenhuma ameaça natural poderia inspirar.
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O termo hebraico hiq’dich e a expressão amath Jahveh, bem como o grego sebastos, denotam essa qualidade numinosa de um terror santificante que distingue o símbolo sagrado de qualquer sinal profano, indicando que a função simbólica é inseparável de uma orientação hierofânica que reunifica o anthropos e o cosmos através de um logos que é verbo criador e não apenas linguagem cultural, transcendendo as estruturas de troca social e econômica estudadas pela antropologia.
A CRÍTICA JUNGIANA E A NECESSIDADE DA PLURALIDADE HERMENÊUTICA
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No campo da psicologia profunda, Carl Gustav Jung estabelece uma distinção crucial ao insistir que os símbolos oníricos não devem ser tratados semioticamente como sinais ou sintomas com significados fixos, mas como expressões de conteúdos que o consciente ainda não apreendeu conceitualmente e que mantêm uma indeterminação essencial, opondo-se à tendência de certos freudianos de reduzir os símbolos a alegorias sexuais fixas, visto que até mesmo o falo, em contextos rituais e psíquicos, é símbolo de um conteúdo vital desconhecido e não apenas do órgão anatômico.
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A prudência metodológica do próprio Freud em Totem e Tabu, ao reconhecer que a psicanálise não poderia explicar isoladamente a complexidade da religião nem reduzir suas origens a uma única fonte, reforça a conclusão de que todas as hermenêuticas, sejam elas linguísticas, estruturalistas ou psicanalíticas, são simultaneamente necessárias e insuficientes, exigindo do pesquisador da simbólica geral uma postura transdisciplinar, uma tolerância epistemológica e uma capacidade de autocrítica para não mutilar a polivalência dos fenômenos simbólicos através de reducionismos dogmáticos.
Ver online : René Alleau
ALLEAU, René. A ciência dos símbolos: contribuição ao estudo dos princípios e dos métodos da simbólica geral. Isabel Braga. Lisboa: Edições 70, 1982.