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A ciência dos símbolos

René Alleau – Divisa e Emblema

A Alegoria

DEFINIÇÃO E ESTRUTURA DA DIVISA E DO EMBLEMA
  • Na terminologia heráldica, a divisa remonta etimologicamente à ação de dispor dividindo ou formar um plano, designando tecnicamente a divisão de uma peça honorífica do escudo, como uma faixa reduzida a um terço da sua largura habitual, acepção esta que difere substancialmente daquela que define a divisa como uma figura emblemática acompanhada de uma sentença concisa explicativa.
  • A estrutura da divisa compõe-se de uma dualidade intrínseca onde a figura representa o corpo e a sentença constitui a alma, elementos que, no contexto das armas, são dispostos em cintas ao redor, acima ou abaixo do escudo, ou inscritos em colares no caso das ordens de cavalaria.
  • A essência da divisa reside numa semelhança abreviada e na máxima concisão, alinhando-se com a observação de Cícero de que a metáfora é uma brevidade contraída de semelhança (Similitudinis est ad verbum contrata brevitas), operando tanto pela representação abstrata destinada aos olhos do espírito quanto pela relação analógica sensível e concreta entre objetos.
  • A distinção entre divisa e emblema, ilustrada pelas descrições de Ésquilo sobre os escudos dos chefes em frente de Tebas (como Polinice e Capaneu), reside no fato de que no emblema a legenda e a figura correspondem-se direta e literalmente, expondo o pensamento sem véus, enquanto a divisa impõe um desvio sutil, uma alusão indireta e uma divergência voluntária que exige a adivinhação de ressonâncias interiores não captáveis imediatamente.
  • O emblema adequa-se à expressão de noções gerais, máximas públicas e verdades universais, ao passo que a divisa se particulariza ao inspirar-se em traços característicos e irredutíveis de uma família, grupo ou indivíduo, constituindo a obra do espírito que mais comunica com o menor número de palavras, superando em síntese o apólogo e o enigma.
A TRADIÇÃO CAVALEIRESCA E A IDADE DE OURO DA DIVISA
  • A divisa fundamenta-se num esoterismo particular, denominado por Scipione Amirato como uma filosofia cavaleiresca ou nobre ciência, cujas origens remontam à divisão indo-europeia das funções tripartidas (sacerdotal, guerreira e produtiva) analisada por George Dumezil, onde os cavaleiros se vinculam ao grupo dos deuses combatentes da tempestade (Rudra, Marte).
  • Apesar do ceticismo de certos especialistas em heráldica quanto ao esoterismo cavaleiresco, divisas históricas como a da Ordem da Estrela (Monstrant regibus astra viam) ou a do Velo de Oiro (Ante ferit quam flamma micet) sugerem uma dimensão iniciática que transcende a mera análise positivista ou documental.
  • A arte da divisa atingiu o seu apogeu durante o Renascimento e o século XVII, especialmente em França, onde se tornou um gênero literário e político onipresente em festividades, arquitetura e moda, permitindo resumir programas políticos complexos em poucas letras, como demonstrado pela divisa do cardeal Richelieu (Stat) que ligava a estabilidade do reino aos seus próprios brasões.
  • A divisa de Luís XII, o porco-espinho com o lema Cominus et eminus (de perto e de longe), exemplifica a riqueza de subentendidos e jogos fonéticos (tueri/tuer), podendo ser lida esotericamente através de paronomásias latinas que transmutam o animal defensivo numa imagem de sol radioso, associando o lar (caminus) ao espírito (animus).
  • O uso de equívocos engenhosos e assonâncias fonéticas, precursor das armas falantes medievais, remonta à antiguidade, como se observa nas moedas de Rodes (Rodon), nos emblemas persas associados ao galo (pursos), ou nas insígnias romanas baseadas em trocadilhos nominais (César/elefante, Lentulus/lentilha), uma tradição perpetuada na linguagem da cavalaria estudada por Rabelais e Fulcanelli.
  • A divisa possui um caráter íntimo capaz de evocar dramas pessoais ou vinganças históricas com extrema economia de meios, como a alteração da divisa de Carlos V (Plus ultra para Plus citra) pelos seus detratores, ou as expressões de ambição e temperamento de nobres como o Conde de Illiers ou Madame de Salers.
  • A composição de uma divisa perfeita era considerada uma das artes mais difíceis, exigindo, segundo Ruscelli, um espírito esclarecido e um gosto requintado para distinguir o que há de fino em cada objeto, qualidades que se tornaram raras numa sociedade moderna que perdeu a sensibilidade para os subentendidos e as alusões sutis.
A EMBLEMÁTICA, A PINTURA E A MAGIA ARTESANAL
  • O termo emblema, na sua acepção antiga utilizada por Homero e Cícero, designava ornamentos físicos, mosaicos, incrustações e relevos em objetos sagrados ou profanos, evoluindo posteriormente para designar figuras que, acompanhadas ou não de legendas, exprimem verdades gerais através de uma linguagem essencialmente visual e figurativa.
  • A história do emblema encontra-se intrinsecamente ligada à história da pintura e das artes plásticas, dependendo de uma aprendizagem artesanal longa e iniciática descrita por Cennino Cennini, a qual envolvia anos de preparação de materiais, estudo de cores e domínio de técnicas como a do cinábrio e do ouro, frequentemente associadas à alquimia e transmitidas sob sigilo rigoroso dos mestres para os discípulos.
  • Em sociedades tradicionais como a do Tibete, o pintor ou fabricante de divindades é um artífice anônimo cuja obra não visa a expressão individual, mas a eficácia mágica e religiosa, dependendo o valor do emblema ou ícone da sua adequação perfeita a cânones e regras tecnológico-rituais precisas, e não da assinatura do artista.
O MANDALA E O SIMBOLISMO DAS CORES
  • O mandala indo-tibetano, analisado por Giuseppe Tucci, constitui um psicocosmograma cuja construção obedece a ritos minuciosos, desde a seleção e torção dos fios da corda de marcação até à aplicação de pós de arroz coloridos para delinear uma estrutura geométrica complexa de círculos e quadrados concêntricos protegidos por uma barreira de fogo e uma cintura de diamante.
  • A estrutura do mandala integra um sistema de correspondências quíntuplas que correlaciona cores, elementos, sentidos e direções, associando o branco ao oeste, o amarelo ao norte, o negro ao sul, o vermelho ao leste e o verde ao centro, refletindo a cosmologia das famílias búdicas.
  • O simbolismo das cores, embora variável entre civilizações, apresenta constantes como a associação do vermelho às potências ativas, ao sol e à soberania (Júpiter Capitolino, porfirogenetas), e do branco à inocência, purificação iniciática e novos nascimentos, sendo a cor dos candidatos, dos espíritos dos mortos e dos dias felizes (homo albus).
  • O azul, cor cósmica e votiva, vincula-se à sabedoria universal e à majestade, enquanto o verde evoca a ambivalência entre a renovação da vida e a putrefação ou falência; historicamente, as cores serviram como distintivos fundamentais de facções políticas e religiosas, desde as quadrigas do circo romano (Brancos, Vermelhos, Azuis, Verdes) até às cruzes das nações nas Cruzadas e às cores de partidos rivais como os Guelfos e Gibelinos ou os Armagnacs e Borguinhões.
  • As cores da bandeira francesa transcendem a explicação puramente histórica para alcançar um nível emblemático onde o corpo tricolor corresponde à alma da divisa republicana (liberdade, igualdade, fraternidade), enraizando-se em tradições ancestrais da nação.

Ver online : René Alleau


ALLEAU, René. A ciência dos símbolos: contribuição ao estudo dos princípios e dos métodos da simbólica geral. Isabel Braga. Lisboa: Edições 70, 1982.