Página inicial > Hermenêutica > René Alleau – A função tipológica do simbolismo
A ciência dos símbolos
René Alleau – A função tipológica do simbolismo
O Tipo
Quando relacionei anteriormente as bases arcaicas da lógica da analogia com as experiências pré-históricas da caça e da armadilha, com o mimetismo animal e a nutrição, tentei demonstrar o caráter concreto dum processo essencialmente dinâmico e baseado, em todos os seus níveis, infra-humanos e humanos, no princípio da assimilação do vivo pelo vivo e na ação do semelhante sobre o semelhante.
Trata-se aqui dum tematismo geral da percepção e da ação nas suas relações com a analogia. Isso não constitui uma prerrogativa especificamente humana: «O tematismo da percepção e da ação cerebral e consciente, diz-nos Raymond Ruyer, caracteriza todas as espécies de vida e até todas as espécies de indivíduos. Caracteriza a consciência primária orgânica e também a consciência segunda cerebral. Os organismos não são amontoados de moléculas, mas conjuntos de órgãos com uma função, um tema de constituição e de ação e a consciência cerebral limita-se a aplicar ao mundo percebido a temática inerente ao organismo... Eis porque, vista de fora e à distância, a humanidade e as suas obras parece continuar a ordem das produções orgânicas. As obras de arte, os monumentos, as máquinas, os códigos, as religiões e as línguas, embora também constituam algo de diferente, são, dum certo ponto de vista, como demonstrou Cournot, produções orgânicas naturais... É que o homem não é o único ser consciente que se esforça segundo temas ‘sensatos’, ao passo que é o único que encontrou o meio de ‘significar’ os sentidos.»
De resto, sabe-se que o animal é capaz de atos inteligentes. Os ratos da Noruega que foram objeto de certas experiências, aprenderam os desvios dum labirinto mais depressa que um grupo estudantes. Muitos animais realizam trabalhos de arquitetura e utilizam instrumentos. Num livro recente, Karl van Frisch demonstrou que determinadas espécies empregam uma verdadeira tecnologia na realização das suas obras de arte. Certos perus astralianos, os Megápodes, que põem ovos enormes em relação ao peso que têm, uma vez que atingem um quarto deste e se sucedem em número de trinta e cinco por estação, constroem uma incubadora artificial. Utilizam areia como isolador térmico e fazem um buraco de três metros de diâmetro por um metro e cinquenta de profundidade onde colocam um composto de folhas e ervas no qual miríades de bactérias produzem um calor considerável regulado a uma temperatura constante de 33 graus, graças à construção de entradas para o ar e, no Verão, de camadas de areia cuja espessura varia em função das condições exteriores. Frank Lloyd Wright afirmou muitas vezes que o homem devia estudar as formas e as construções dos animais que usam como instrumento principal o seu próprio corpo.
Todos estes fatos constatados no domínio infrahumano e humano não põem apenas o problema da passagem do tematismo inconsciente para o simbolismo consciente, da transição entre temas associados a esquemas motores ou a estímulos-sinais, e «modelos» míticos e simbólicos muito mais complexos. Estas observações incitam-nos também a interrogarmo-nos acerca da própria origem destes «modelos» e destes «temas».
SINALIZAÇÃO E SIGNIFICAÇÃO
Raymond Ruyer propôs uma teoria da função simbólica e da sua origem que convém lembrar aqui, pois ela parece-me mais acertada que a de E. Cassirer; para este, numa perspectiva quase-kantiana, as «categorias simbolizantes» constituem o mundo da cultura tal como, no sistema de Kant, as «categorias» da sensibilidade e do entendimento «constituem» o mundo dos fenômenos.
Aceitando o princípio de Cassirer segundo o qual a unidade específica das obras humanas e dos diversos setores da cultura se deve ir buscar à função simbólica e à manipulação dos signos-símbolos, muito diferentes dos «estímulos-indicios» do animal, Raymond Ruyer especifica que esta passagem se faz quando o sinal «é compreendido não já como anunciando ou indicando um objeto ou uma situação semelhante ou próxima, mas como podendo ser utilizado em si mesmo, para conceber o objeto, mesmo na ausência deste objeto».
A mesma palavra, por exemplo, «água», pode servir de duas maneiras diferentes e situar-se a níveis diferentes. Ela designa a presença do objeto para o qual aponta: «Eis aqui a água...». Ou, então, fixa a concepção ou a ideia enquanto instrumento do pensamento, mas não da ação imediata, na ausência do objeto e sem intenção realizadora em face deste. «Não é, pois, a linguagem, no sentido mais geral da palavra, observa Raymond Ruyer, mas a linguagem enquanto sistema simbólico que, ao permitir as concepções e os pensamentos ‘inatuais’, constitui simultaneamente o instrumento e a marca do nível humano... O animal, com ou sem palavras, é capaz, através do gesto, da mímica ou da vocalização, de ‘falar a alguém’, de se exprimir. A humanidade começou quando, graças a uma mudança funcional aparentemente insignificante, a uma mutação mental que não implicava a menor mutação orgânica nem nenhuma animação nova e milagrosa, um pré-homem utilizou um indício como sinal, falou com alguém ou, em primeiro lugar, consigo próprio, de alguém ou de alguma coisa através de enunciados ou de gestos simbólicos.»
Raymond Ruyer observa acertadamente que a intenção de comunicar não basta para explicar o comportamento simbólico. Efetivamente, a comunicação estabelece-se duma forma espontânea através de «sinais-indícios» cujo lado utilitário imediato impede mais do que favorece a transformação do indício em símbolo: «Uma paragem da ação imediata e da comunicação, sublinha ele, é, pelo contrário, a condição indispensável da experiência mental e do comportamento simbólico. O animal comunica espontaneamente necessidades atuais. As primeiras ‘concepções’ do animal-homem devem ter-se produzido fora das pantomimas de comunicação e até em oposição a estas.»
Esta observação é importante. E. Sapir lembrou que as primeiras vocalizações da criança têm um caráter «autístico» indubitável. As tentativas de aprendizagem da linguagem feitas por chimpanzés, por crianças «selvagens», por surdos-mudos-cegos de nascença falharam enquanto os educadores teimaram em permanecer no plano da comunicação utilitária. Em contrapartida, elas pareceram ter êxito quando os sujeitos, muitas vezes por acaso, se encontravam num estado de desprendimento e concebiam, num sentido estético ou mágico, o valor expressivo próprio de certos objetos.
S. Langer, nas suas observações do caso duma cega-surda de nascença, Helen Keller, demonstra que quando esta, após três semanas de exercício, aprendeu a interpretar os sinais tácteis que lhe traçaram na palma da mão, passando a conhecer assim vinte e uma palavras, estas não constituíam para ela, originariamente, mais do que indícios, pois ainda não possuía a noção de que «tudo tem um nome». Confundia, por exemplo, a «palavra-sinal» mug, «tímbalo» com a «palavra-sinal» water, «água», estando uma e outra associadas à ação de «beber», tal como o cão condicionado pode confundir o «barulho de metrónomo» com a «blusa branca de Pavlov». O mistério da linguagem foi revelado a Helen Keller quando a professora desta lhe agarrou na mão e a colocou debaixo dum jato de água fresca, ao mesmo tempo que soletrava na outra mão, através de sinais tácteis, a palavra water. «Soube, nessa altura, que aquela coisa maravilhosamente fresca (wonderful cool something) que escorria pela minha mão era verdadeiramente significado por water.» Assim, aquela palavra não constituía apenas um «indício» pelo qual a água era esperada, pedida ou obtida. Passou a ser também «o nome dessa substância graças à qual ela se podia mencionar, evocar, conceber, festejar».
Vemos, pois, que a descoberta da significação poética e simbólica da palavra é uma experiência absolutamente distinta da interpretação utilitária e pragmática da sua sinalização. Um chimpanzé pode aprender a pronunciar a palavra «papá» quando vê o seu pai adotivo, como sucedeu nas experiências de Kellog com Gua, ou a palavra «banana», no caso de Yerkes com Chun. No entanto, trata-se, neste caso, dum adestramento particular, duma aplicação da «palavra-indício» a um comportamento. O animal não compreende melhor do que Helen Keller antes da sua «iluminação» repentina, que tudo tem um nome e que todos os nomes podem evocar um objeto ausente, tornando a sua repetição de novos presentes, à experiência interior, as imagens das lembranças e as suas relações analógicas. De resto, os animais, sensíveis à expressividade das formas visuais, não o são à das formas vocais tão claramente como as crianças. Uma vez que não têm vocalizações espontâneas, não são capazes de elaborar vocalizações facilmente susceptíveis de serem repetidas, algumas das quais poderiam impressioná-los pela sua expressividade ou favorecer uma montagem cerebral que correspondesse às formas visuais dum objeto ou duma situação. Não existe mais do que uma diferença de grau de evolução entre a sinalização e a significação. Entre o animal e o homem continua a existir um intervalo inexplicado e talvez inexplicável ou, antes, um abismo a que se dá o nome de consciência. Na verdade, é a consciência a causa e a condição da função simbólica da linguagem. As suas relações mútuas, no entanto, são de tipo cibernético e implicam efeitos de retroação, como os da mão e do cérebro.
O INTERVALO, A CONSCIÊNCIA E O TEMPO
A capacidade de retardar a ação imediata, a possibilidade de «colocação à distância» do «sinal-símbolo» relativamente ao «kidício-sinal», a percepção de vários «níveis» de significação das coisas e dos seres são características especificamente humanas. Nesta perspectiva, Heidegger viu com grande profundidade a nossa condição, concebendo o homem como um «habitante do Tempo». Efetivamente, com o intervalo indispensável a qualquer diferenciação entre o atual e o inatual, o percebido e o concebido, o presente e o representado, surgiam simultaneamente a consciência, o descontínuo subjetivo-objetivo e o tempo. Aquilo que caracteriza o homem enquanto homem é também aquilo que o separa duma integração total do ato no eterno presente, duma experiência existencial imediata e espontânea que é também a do animal e a da criança muito jovem. Este intervalo pode ser sentido como uma «queda» no tempo e, sob este ponto de vista, como um «pecado» realmente original, uma vez que tem como consequência permitir-nos conceber a nossa própria morte enquanto acontecimento previsível e certo. «Habitar no tempo» ou saber que temos que morrer tarde ou cedo é um dado original e único da nossa condição.
É aqui que intervém uma outra experiência inacessível ao animal, a da significação do objeto ausente, a da «palavra-símbolo», relativamente à sinalização do objeto presente. Vemos assim quão prodigiosa é a arquitetura que a linguagem humana ergue e opõe ao tempo e à morte, embora as suas bases estejam enraizadas nelas. A «logosfera» tornou-se para o homem um novo meio vivo que transcende a passagem do tempo e os seus limites efêmeros. Ao darem nomes aos seres e às coisas, eles nascem para uma outra vida, a da sua significação, a da sua função simbólica. Eis porque o «animal-simbolizante» que é o homem se alimenta dos produtos deste novo meio vivo, a «logosfera», tal como o animal se alimenta das produções da biosfera. Uma sociedade sem símbolos não pode, pois, deixar de descer ao nível das sociedades infra-humanas quando são agitadas e determinadas apenas por indícios e estímulos-indícios.
Em contrapartida, se o processo «de assimilação do vivo pelo vivo» se ergue, através de níveis sucessivos, desde os mais baixos graus de nutrição aos mais elevados, podemos conceber que estes não estejam limitados às realidades humanas e que a função simbólica constitua também um meio de relação entre o humano e o supra-humano.
Nestas condições, como é que os estados «supra-humanos» do ser não poderiam ser ligados aos estados «humanos» através dos símbolos, quando constatamos com evidência que o homem está ligado com toda a parte «infra-humana» da sua condição através doutros sinais e de «estímulos-indícios»? Pelo menos, é isto que afirmam todas as tradições iniciáticas e religiosas a propósito da instituição «supra-humana» e «divina» dos seus símbolos, dos seus mitos e dos seus rituais. Estamos evidentemente, no direito de duvidar disso, mas não poderemos constatar esta unanimidade acerca deste ponto capital.
De resto, que significa essa hipótese se não que as realidades espirituais existem sob formas tão diversas como as realidades materiais, físicas e intelectuais? O fato de um único movimento de caridade ter conseguido uma só vez produzir-se num universo físico e no seio duma natureza que parecem ignorá-lo totalmente, constitui por si só um enigma. Donde surge ele? Quai a sua verdadeira origem? A caridade não é material nem natural porque, se o fosse, constataríamos a sua existência nos fenômenos observados. Se ela é de origem social, também não a vemos manifestar-se nas sociedades animais, só começando a sê-lo ao nível das sociedades humanas. Nesta perspectiva, chegamos ao paradoxo que consiste em defender que o homem teria inventado, graças unicamente ao seu gênio, algo que não existe em parte alguma fora dele na imensidade do Cosmos. Onde descobriu ele o modelo? Se não o encontrou fora dele, encontrou-o em si, no seu próprio coração. Mas nesse caso temos que admitir que esse coração é diferente de tudo o resto ou então que, se não o foi sempre, se tornou assim. Encontramo-nos, pois, perante duas conclusões inevitáveis: ou a natureza evolui para o sobrenatural, ou o sobrenatural existe na natureza, ou então o universo contém uma caridade que ignora ou a caridade não está contida no universo.
A posição das tradições antigas face a estes raciocínios ilusórios caracteriza-se pelo simples bom senso. Uma vez que somos incapazes de criar algo a partir de nada e que, por outro lado, a vida espiritual existe na condição humana, mas não na natureza terrestre que não fornece nenhum exemplo dela, nem no universo tal como o observamos, nem nas condições da nossa vida animal, os seus «modelos» foram obrigatoriamente ensinados às sociedades humanas por «instrutores supra-humanos», ou então, os homens conhecem-nos através duma inspiração ou duma verdadeira revelação «supra-humana». Caso contrário, o homem seria um ser absolutamente estranho à realidade universal, um mistério totalmente incompreensível. Vemos assim que a afirmação da existência de poderes espirituais não os situa necessariamente «fora» do Cosmos, como frequentemente se afirma.
O gênio de Ibn Khaldun pressentira, muito antes das teorias «evolucionistas» modernas, a ascensão geral do Cosmos e a existência dos diversos níveis das relações dos vivos com a vida universal.
«Contemplem o universo da criação!»1, diz Ibn Khaldun. Ele parte do reino mineral e ascende progressivamente, de maneira admirável, ao reino vegetal e depois ao animal. O último «plano» (ufuq) mineral está ligado ao primeiro plano vegetal: ervas e plantas sem semente. O último plano vegetal — palmeiras e vinhas — está ligado ao primeiro plano animal, o das lesmas e dos moluscos, que não possuem nenhum sentido além do do tato. A palavra «relação» (iítisâl) significa que o último plano de cada reino está pronto a tornar-se mo primeiro do reino seguinte.
«O reino animal (alam al-hayawân) desenvolve-se, as suas espécies aumentam e, dentro do progresso gradual da Criação (tadarruj at-takwin) termina no homem, dotado de pensamento e de reflexão. O plano humano é atingido a partir dos macacos (girada), nos quais existe sagacidade (kays) e percepção (idrâk), mas que ainda não atingiram a reflexão (rawiyya) e o pensamento. Dentro deste ponto de vista, o primeiro nível humano vem depois do mundo dos macacos; a nossa observação fica-se por aqui.»
Estas concepções de Ibn Khaldun bastam, parece-me, para demonstrar que a filosofia tradicional não é necessariamente «infantil» ou «ingênua», como pretendem os seus adversários «cientistas» que nunca se deram ao trabalho de ler os textos dos autores antigos, que julgam sem conhecerem. Aliás, resta perguntar se muitos dos teólogos considerados «modernos» e «revolucionários» não se inspiraram em obras antigas não citadas pelos seus plagiários. Conheço vários exemplos disso, até no domínio das teorias físicas e matemáticas. Contrariamente às aparências, a descoberta duma ideia verdadeiramente nova é tão rara como a dum continente inexplorado.
Ibn Khaldun raciocina quando deixa de poder observar fatos, o que não sucede com Darwin, e é esse, embora os «racionalistas» pretendam o contrário, o único uso legítimo que se pode fazer da razão. «Ora, diz ele, nestes mundos diferentes encontram-se influências diferentes. O mundo sensível é influenciado pelos movimentos das esferas e dos elementos. No universo da Criação, há influências dos movimentos de crescimento e de percepção. Tudo isso mostra bem que existe alguma coisa distinta do corpo que exerce uma influência. Trata-se de algo espiritual (rühâni) ligado às criaturas, uma vez que os diversos mundos se relacionam com a sua existência. Este elemento espiritual é a alma (nafs) que percebe e que move. Acima da alma deve existir algo relacionado com ela que lhe confere um poder de percepção e movimento, cuja essência é percepção pura e compreensão (ta’aqqul) absoluta: é o Mundo dos Anjos. É necessário, pois, que a alma esteja pronta a despojar-se da humanidade e a trocá-la pelo angelismo (mala-kiyya) a fim de participar, subitamente, na espécie angélica. É isso que se produz quando a essência espiritual da alma atinge a perfeição.
«A alma está em conexão com o nível vizinho, tal como os outros planos das coisas existentes, tanto para cima como para baixo. Para baixo, está ligada ao corpo: é isso que lhe proporciona as percepções sensoriais que a preparam para a compreensão efetiva. Para cima, liga-se ao nível dos Anjos. É aí que ela adquire as percepções científicas e sobrenaturais: com efeito, o conhecimento dos acontecimentos que se produzem existe nas inteligências intemporais dos anjos. Tudo isto, por causa da Ordem do universo cujas essências e poderes devem depender uns dos outros... As possibilidades de percepção sensorial são progressivas, desde a mais elevada, o pensamento ou potência racional (nâtiqa).»
Se analisarmos este texto com atenção, vemos que o «evolucionismo» de Ibn Khaldun corresponde a uma concepção da ordem e que a podemos justificar cientificamente por meio duma teoria geral da entropia positiva ou negativa. O homem e o animal alimentam-se de entropia negativa, ou seja, de ordem, a fim de compensar a sua entropia positiva, isto é, a desordem provocada pela aparição de qualquer sistema de acontecimentos num sector espácio-temporal dado. Efetivamente, é a ordem que é nutritiva e não apenas a energia e o átomo, pois uma caloria equivale a outra e um átomo de ferro ingerido não é nada mais, em si mesmo, do que qualquer outro átomo de ferro do meio exterior. A ordem biológica é, de fato, o verdadeiro substrato da nutrição do vivo porque traz «a ordem a partir da ordem» e não «a ordem a partir da desordem», como no mecanismo estatístico da ordem física.
Estes fenômenos existem não só ao nível do corpo, mas também ao nível da alma e do psiquismo. A ordem de que a alma se alimenta traz também «a ordem a partir da ordem», mas de duas maneiras e sob dois aspectos distintos: nas suas relações passivas com o corpo e a sua história, isto é, segundo as suas impressões passadas, e nas suas relações ativas com o espírito e a sua atividade criadora, ou seja, segundo os seus modelos futuros. Assim, a função simbólica exerce-se segundo uma dupla polaridade, uma inconsciente, a outra supra-consciente, a primeira determinada e realizada, a segunda, em vias de determinação e de realização.
A IMPRESSÃO E O MODELO
No reino animal, a imagem do objeto que aparece e é percebido precocemente parece «impregnar» certos jovens vertebrados e, em particular, os pássaros nidífugas e nidícolas. Spalding observara, em 1873, que os pintainhos podem procurar tanto a companhia dum pato como dum homem ou duma galinha. Whitman constatou, no fim do século passado, que as tartarugas selvagens chocadas por tartarugas domésticas preferiam, na idade adulta, acasalar-se com estas a fazê-lo com as da sua própria espécie. Em 1935, Lorenz propôs uma teoria geral destes fenômenos de formação de relações de apego familiar ou de orientação sexual que nada têm de inatas, mas são adquiridas no decurso da história individual do animal. Lorenz chamou «impressão» (Pragung) a esta «aquisição do objeto orientador das reações instintivas sociais».
Ela distingue-se dos outros modos de aprendizagem por diversas características. A impregnação só pode dar-se durante um breve período crítico da vida dum indivíduo e num estado fisiológico específico do desenvolvimento do jovem animal. Passado este período, tudo funciona como se se tratasse dum conhecimento inato, «irreversível» e «totalmente rígido». Esta impressão é consolidada antes das reações comportamentais e, em particular, sexuais, serem, elas próprias, fixadas. O «esquema motor» da impressão não corresponde a um reconhecimento dos caracteres particulares do objeto «impregnante», mas ao conjunto dos caracteres gerais da categoria a que o objeto pertence.
É este último ponto que me parece o mais importante nas suas relações com a função indutora da analogia. Speeman observara já que, se se retirar tecido dum embrião de tritão da região ventral, num estado pouco avançado de diferenciação celular, e o enxertarmos em seguida na região goteira neural, obtém-se um bocado de medula espinal e reciprocamente, por uma espécie de «acordo analógico» com o substrato. Em contrapartida, uma vez ultrapassado o «momento crítico», as característicos do lugar de origem deixam de ser permutáveis.
Aliás, devemos observar que um modelo artificial substituído permite realizar o fenômeno de impregnação duma forma tão nítida como um sujeito natural impregnante. Um jovem pato pode, entre a décima terceira e a décima sexta hora depois de nascer, ser induzido analogicamente, numa dezena de minutos, a experimentar um apego por um modelo empalhado, sonoro e móvel, com o qual foi encerrado numa gaiola circular. O fato da irreversibilidade da impressão não me parece tão nitidamente estabelecido como supõe Lorenz, mas não há dúvida que a indução analógica inicial provoca sempre uma fase de regressão e de regresso a comportamentos juvenis, noutras circunstâncias semelhantes às da primeira impregnação. Sujeitos adultos, educados socialmente, ficam tão perturbados com a aparição do modelo inicial como os jovens, e os seus comportamentos sexuais são um testemunho disso. Não podemos pôr em dúvida que existem simultaneamente profundos efeitos da impregnação e um período experimental privilegiado para a sua realização artificial ou natural.
O apego analógico ao objeto impregnante vai muito longe no sentido da semelhança das relações que determinam posteriormente a escolha e procura sexual do parceiro. P. P. G. Bateson demonstrou em 1966 que um pintainho criado isoladamente se ligava até ao esquema das paredes da sua própria gaiola e, posteriormente, podia procurar um objeto com aspectos análogos. Jean-Marie Vidal referiu, em 1976, num artigo notável’, que «galos isolados procuram acasalar-se com a manjedoura ou o bebedouro, que preferem por vezes a uma companheira da sua própria espécie. Por outro lado, a maior parte dos galos assim educados dirige os seus comportamentos agressivos e sexuais para certas partes do seu próprio corpo.»
Esta observação parece-me muito importante, pois deixa supor que o galo pode adquirir «a partir de estímulos específicos emanados do seu próprio corpo, certas informações que integra no processo de identificação do objeto das suas reações sexuais». Jean-Marie Vidal acrescenta que tais galos orientam os seus comportamentos sexuais para um parceiro que se lhes assemelhe, mesmo que seja um macho e que, nessa altura, as tentativas de acasalamento que fazem são orientadas em posição inversa.
Lorenz sublinhou outro ponto, não menos significativo: a impressão não corresponde à aquisição duma ligação «estímulo-resposta», mas à dum objeto polivalente, portador de múltiplas respostas e, em particular, a do repertório do comportamento social. O apego à mãe não é apenas nutritivo, é territorial tanto no jovem pássaro como no primata.
Há que reter destas experiências complexas e ainda em vias de interpretação, que a angústia do jovem, animal ou humano, se torna mais intensa quando não há objeto de impregnação e de contato ou se ele o perde prematuramente. Spitz constatou a existência duma mortalidade acentuada em crianças hospitalizadas e sem objetos de apego. O mesmo sucede com jovens pintos criados num estado de isolamento, apesar do grau de conforto material das suas gaiolas e da satisfação das suas necessidades de calor, de alimento e de bebida. O apego analógico ao território e a certas zonas dum biótipo tem origem, provavelmente, nos mesmos fatores afetivos que os da impregnação original. Tudo aquilo que degrada o ambiente topográfico, familiar e social, exerce, pois, sobre todos os seres vivos em estado de crescimento, efeitos de angústia interior que não conseguimos sequer imaginar e cujas consequências podem ser irreversíveis.
Ver online : René Alleau
ALLEAU, René. A ciência dos símbolos: contribuição ao estudo dos princípios e dos métodos da simbólica geral. Isabel Braga. Lisboa: Edições 70, 1982.