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A ciência dos símbolos

René Alleau – A função alegórica do simbolismo

A Alegoria

Distinção entre Alegoria e Símbolo e a Hermenêutica de Orígenes
  • Embora Jean Pépin, em Dante et la tradition de l’allégorie, observe que a modernidade, sob influência do romantismo alemão, tende a separar rigidamente a alegoria do símbolo como sendo o artifício didático oposto à espontaneidade da vida, tal distinção não se verificava nos costumes antigos e medievais, onde a definição de alegoria era suficientemente lata para abarcar quase todas as variedades da expressão figurada, inclusive a simbólica.
  • A diferenciação entre símbolo e alegoria, ainda que não fosse absoluta em autores como Fílon, estabelece-se pelo fato de a alegoria constituir simultaneamente um processo retórico e uma atitude hermenêutica ligada ao discurso e à interpretação, fundamentando-se na metáfora, ao passo que o símbolo opera uma recondução do significante e do significado ao próprio Significador, fundamentando-se na anáfora e constituindo a base da dinâmica iniciática e religiosa.
  • Orígenes, em De principiis, especifica uma associação estreita entre três níveis de compreensão escriturística análogos à constituição humana, onde o simples é instruído pela carne da Escritura ou leitura vulgar, aquele que progrediu é instruído pela alma da Escritura, e o perfeito é instruído pela lei espiritual que é a sombra dos bens futuros.
  • A interdependência destes três níveis hermenêuticos implica que a alegoria, embora distinta do símbolo, esteja profundamente ligada a ele, pois a lógica da analogia assenta numa realidade concreta que não pode ser falsa para servir de sinal verdadeiro a outra realidade, demonstrando que o processo alegórico possui um papel cultural e didático importante, ligando-se à iconologia e à memória.
  • A verdade nos textos sagrados não pode exprimir-se sem o véu dos sinais e dos tipos, exigindo um movimento ascensional ou anáfora que conduz do visível ao invisível e do inteligível ao supra-inteligível, permitindo ao homem erguer-se até à interpretação espiritual e anagógica, onde, conforme a citação de Teódoto utilizada por Orígenes, a sombra da luz não é treva, mas iluminação.
  • Em Contra Celsum, Orígenes defende a interpretação espiritual ou tropologia como uma operação ressuscitadora do próprio Significador, argumentando contra as críticas de Celso aos pormenores da ressurreição de Jesus que cada evento deve ser compreendido como significativo de uma realidade espiritual acessível àqueles prontos para contemplar a ressurreição do Verbo.
A Exegese no Islã e a Tensão entre Autoridade e Liberdade
  • No contexto da tradição islâmica, a ortodoxia sunita opôs-se historicamente à exegese alegórica favorecida pelos místicos, como exemplificado pela declaração de At-Tabari no século IX de que aquele que se serve unicamente do seu julgamento para ler o Corão labora no erro e diz contra Alá aquilo que não sabe, uma posição dogmática explicável pela necessidade de conservar a unidade da comunidade face a ameaças internas de cismas teológicos.
  • A escola dos Mu’tazilitas, influenciada pela filosofia helenística, utilizou a tradição das escolas de leitores e da pluralidade de leituras permitidas para propor variantes vocálicas no texto que lhes permitissem conservar uma interpretação racionalista sem colidir frontalmente com as posições dogmáticas estabelecidas pelo consensus omnium e pela sunna.
  • Dada a ausência de uma autoridade eclesiástica centralizada no Islã, o princípio do acordo ou idjma dos canonistas tornou-se fundamental para limitar os excessos da interpretação individual que poderiam prejudicar a elaboração da Lei, consolidando o comentário literal ou tafsir em oposição à explicação interpretativa ou ta’wil.
  • O ta’wil ismaeliano, analisado por Henry Corbin, constitui uma exegese espiritual e esotérica que se distingue por ser uma operação sempre inacabada e ligada ao nascimento espiritual de cada indivíduo, contrastando a livre iniciativa e a livre pesquisa com a submissão dogmática, pois a tradição esotérica autêntica não implica renúncia ao espírito de investigação.
  • A liberdade é a essência do princípio espiritual e o objetivo do conhecimento, de modo que a exegese espiritual não deve ser separada de uma implicação livre do Significador, o qual se revela como, quando e a quem lhe aprouver, estabelecendo uma dialética necessária entre a vida livre do Único em cada indivíduo e a vida organizada da Unidade na comunidade.
  • A hermenêutica adequada exige uma lógica da alternância em vez de uma lógica da alternativa, reconhecendo que os sentidos literal, alegórico, histórico, moral e anagógico coexistem na Escritura e que o processo metafórico representa uma expansão horizontal da analogia, enquanto o processo anafórico representa uma orientação vertical em direção ao Significador.
Os Níveis da Hermenêutica Filoniana
  • Fílon de Alexandria, seguindo a tradição platônica e estoica, estrutura a hermenêutica da Sagrada Escritura em três níveis: o cosmológico, o antropológico e o místico, sendo que a interpretação cosmológica já era praticada por Plutarco ao identificar divindades com elementos naturais e por Flávio Josefo ao ver no vestuário do Grande Sacerdote uma alegoria dos quatro elementos.
  • Na exegese cosmológica de Fílon, o Templo visível é a figura do mundo inteiro, onde o santuário corresponde ao céu, os objetos sagrados aos astros e os sacerdotes aos anjos, enquanto pormenores como os dois lados do Arco e os quatro animais representam, respectivamente, os equinócios e as estações.
  • A exegese antropológica ou moral de Fílon utiliza frequentemente alegorias animais, associando o boi ao corpo submisso, a cabra aos sentidos e o carneiro ao logos ativo, além de interpretar personagens bíblicos como Adão e Eva como representações do espírito e da sensação, respectivamente.
  • A exegese mística distingue-se das anteriores por não se basear apenas na metáfora, mas na anáfora, iniciando a iniciação nos grandes mistérios teogônicos que transcendem a linguagem da natureza e da cultura, como ilustrado na interpretação do sonho de Jacob onde o pôr do sol simboliza a extinção da luz mortal e dos sentidos para permitir o encontro com o Logos divino.
  • A comparação entre os comentários de Rachi e Fílon revela que, sob a aparência de um comentário literal e lacónico, Rachi alude a profundidades místicas que exigiam dos leitores da época um ouvido simbólico apurado, necessário para decifrar a estrutura críptica e as precauções hermenêuticas dos textos medievais.
Estrutura Simbólica e Numerológica dos Textos Sagrados
  • O método histórico mostra-se insuficiente para resolver a complexidade dos textos sagrados, pois, como demonstra E. C. Hoskyns sobre o Evangelho de S. João, existe uma barreira intransponível que impede a separação entre a história e a interpretação espiritual, sendo o Espírito que confere realidade às ações observáveis.
  • A leitura dos textos sagrados implica a admissão de uma sobreposição de perspectivas onde cada leitor percebe apenas o nível correspondente ao seu grau de iniciação ou evolução espiritual, revelando uma estrutura que ultrapassa a capacidade de elaboração consciente de um autor comum.
  • O estudo do vocabulário do Apocalipse e do Evangelho de S. João evidencia uma estrutura simbólica numerológica, onde a frequência de palavras como psuke (vida), mencionada dez vezes, corresponde à simbólica global do denário ou da Tetractys pitagórica (10 = 1+2+3+4), além de apresentar agrupamentos parciais significativos no texto.
  • As pesquisas de François Quiévreux e E. Laubscher demonstram estatisticamente que tais arranjos numéricos e a complexidade do encadeamento das palavras não podem ser atribuídos ao acaso, comparando a obra sagrada a um mecanismo de relógio de precisão extraordinária ou a uma partitura musical onde a estrutura matemática subjaz à inspiração sem ser fruto de cálculo consciente.
  • A transcendência da revelação, tal como formulada no versículo LXXXI do Corão, reafirma que a palavra do mensageiro não é fruto de possessão ou demônio, mas uma visão do horizonte brilhante e uma edificação para aqueles que buscam o caminho, confirmando a existência de um modo de pensamento que transcende a lógica puramente racionalista moderna.

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ALLEAU, René. A ciência dos símbolos: contribuição ao estudo dos princípios e dos métodos da simbólica geral. Isabel Braga. Lisboa: Edições 70, 1982.