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Meyrink – O motivo do duplo no Golem
sexta-feira 23 de maio de 2025
GUSTAV MEYRINK Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) — O GOLEM (MeyrinkG)
Apresentação de Isabel Hernández da versão em espanhol
Conforme o exposto até aqui, é evidente que o protagonista do romance, Athanasius Pernath, e a criatura que o intitula, o golem, estão estritamente relacionados. O encontro com este ser artificial, a princípio atemorizante e desagradável, torna-se para o lapidador de gemas o acontecimento chave que desencadeia a busca por seu passado, suas lembranças e sua pessoa, em resumo, a busca de si mesmo. Na constelação que se gera entre Athanasius Pernath, que representa a esfera real do romance, e o golem, que representa a supranatural, verifica-se, por um lado, a dualidade de ambos os mundos que subjaz a qualquer obra enquadrável sob o denominador de literatura fantástica, ou seja, a conjunção de fenômenos reais e suprassensoriais, e a limitação das diferentes esferas, que se condicionam e se influenciam mutuamente, ao mesmo tempo em que se molda, por outro lado, a problemática do duplo tão reiterada na literatura fantástica.
Foram os românticos que viram no motivo do duplo uma temática muito atrativa e de grande interesse para sua configuração da realidade. Posteriormente, e devido provavelmente também à similaridade com um mundo imerso em uma nova crise de identidade, foi também um dos que gozou de maior apreciação no período do fim de século, sobretudo pelas possibilidades que oferecia para uma análise de tipo psicológico, em correspondência, como já foi assinalado, com o marcado interesse dos intelectuais deste período por tudo o relacionado com a mente humana e, consequentemente, com as ciências ocultas e com tudo aquilo que pudesse fazê-lo entrar em contato com qualquer âmbito além da razão e pudesse demonstrar que a personalidade de um indivíduo não precisava se ajustar necessariamente à dicotomia estabelecida entre o bem e o mal, pois podia se desenvolver perfeitamente em níveis muito diferentes. Essa divisão da personalidade, cuja análise tem suas raízes nas teorias do mesmerismo e do magnetismo desenvolvidas no final do século XVIII, é uma das bases sobre as quais se assenta a figura de Athanasius Pernath, também no que se refere ao motivo do duplo, pois se constitui como tal mesmo sem cumprir um dos critérios fundamentais para sua definição, ou seja, a total identidade física. Em outras palavras, o caráter de duplo que o golem de Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) apresenta não se manifesta tanto em aspectos externos quanto nas transferências de personalidade de uma parte para outra, assim como na fusão final que ocorre entre Athanasius Pernath e este ser artificial.
É precisamente no temor que o golem inspira a Pernath que se reconhecem as ideias de Freud, segundo as quais tudo de terrível que o ser humano tenta esquecer e fazer desaparecer de sua vida retorna a ele em algum momento e de alguma forma, não necessariamente conhecida. O duplo tem, nesse sentido, um efeito perturbador, visto que a identificação que ocorre com o outro eu, possuidor dos mesmos conhecimentos, sentimentos e vivências, chega a substituir a própria personalidade. Desse modo, o que se questiona é a personalidade do indivíduo confrontado com seu duplo, e que só pode ser recuperada por meio do enfrentamento com as vivências banidas e com aspectos da própria personalidade que é necessário superar, algo que só pode ser alcançado através da união redentora do indivíduo com suas próprias lembranças, pois isso o fará recuperar novamente a consciência perdida.
Os encontros com o duplo produzem no indivíduo, além de uma sensação de temor e ameaça, uma profunda insegurança que, consequentemente, vai se apoderando pouco a pouco também de Pernath: ao tentar descrever o aspecto do indivíduo que lhe trouxe o livro de Ibbur para restaurá-lo, por exemplo, ele não é capaz e tenta encontrar a confirmação da lembrança que lhe restou desse personagem na descrição que Zwakh lhe faz do golem. Ou seja, a insegurança de Pernath se torna patente até na insegurança de sua própria linguagem, pois ele é incapaz de proferir uma única palavra que dê margem à descrição. Vários serão os encontros que o protagonista terá com o duplo, cada um deles em necessária correspondência com os degraus que devem ser galgados no caminho para a consecução do conhecimento e da lembrança perdida, os quais, uma vez alcançados, fazem com que o golem deixe de ser considerado como fonte de temores, para deixar de ser assim o reflexo dessas lembranças e vivências e se converter em algo muito superior, na personificação de todas as almas do passado, ou o que é o mesmo, em um símbolo da alma coletiva judaica. Desse modo, à medida que Pernath avança em direção ao conhecimento, o golem vai perdendo sua força até se converter na chave que abrirá ao protagonista a porta de seu passado e, consequentemente, de seu próprio eu.
Mas não só o golem, também o arquivista Hillel desempenha um papel importante no processo de recuperação da memória e de reencontro de Pernath com o próprio eu, a partir do momento em que é ele quem anuncia ao protagonista o que lhe acontecerá em seus encontros com o golem e lhe assegura que, efetivamente, terá que evocar primeiro seus fantasmas do passado e enfrentá-los para depois superá-los. Ele é o único consciente da função do golem como duplo, capaz, portanto, de fazer ver a Pernath que o encontro com a terrível criatura representará para ele o ponto de partida para a busca de seu eu, pois o que representa na realidade não é mais do que a corporeificação dos aspectos mais ocultos de sua personalidade.
No contexto do romance, o golem vive também como um ser duplo que pertence à experiência e à lenda coletiva dos habitantes do gueto. Mas aqui, dentro da tradição do gueto, também o golem aparece dividido em dois: por um lado, como a criatura que o rabino Löw criou, ou seja, como uma manifestação singular do passado; por outro, nas versões sobre a criatura e seu retorno regular que chegam até o momento presente, de forma que sua aparição é, por onde se olhe, parte integrante da experiência viva dos habitantes do gueto. Zwakh desenvolve algumas teorias a respeito de como ambas as formas de entendê-lo podem ser relacionadas, pois para ele a matéria à qual o rabino deu forma sempre retorna nas mesmas circunstâncias astrológicas em que foi criada, atormentada a todo momento por um impulso de vida material. É precisamente essa ideia, esse impulso, que mantém o golem vivo e inalterado ao longo do tempo, e por isso precisamente ele se torna símbolo de uma divisão que o afeta diretamente: o golem faz com que o narrador se perceba dividido, ao reconhecer nesse ser uma identidade que, em última análise, o leva a reconhecer-se como outro.
Nesse sentido, é revelador também o fato de que o caminho de encontro com o golem, ou seja, com sua personalidade, aconteça em um lugar sem acesso, ao qual o protagonista chega através das profundezas subterrâneas do labirinto do gueto, um caminho físico que facilmente pode ser reconhecido como um caminho análogo ao que ele deve percorrer pelas profundezas de seu subconsciente até chegar a esse lugar sem acesso onde suas lembranças estão aprisionadas. Após um longo vaguear por passagens e escadas escuras, Pernath chegará ao quarto onde, segundo a lenda, o golem vive aprisionado por trinta e três anos, e será precisamente nesse lugar que ocorrerá uma nova fusão de ambas as identidades, pois, para se aquecer, Pernath veste as roupas deixadas ali pelo golem. Ao ocorrer essa identificação com ele, e com isso, por sua vez, com a parte esquecida de sua própria personalidade, Pernath recompõe a unidade de seu eu e, ao realizar o ritual da troca de roupas, que nada mais é do que o enfrentamento com seus próprios temores, conseguirá definitivamente superar os obstáculos e recuperar seu passado. Dito de outra forma: também o espaço é um reflexo da estrutura especular que domina toda a novela.
Assim, Athanasius Pernath consegue encontrar um terceiro caminho, um caminho próprio, ao enfrentar as sombras de seu passado, reencontrar-se com seu eu e superar todos os seus temores. Este terceiro caminho, já anunciado por Hillel, o conduzirá à união com seus antepassados e, através dela, com todo o povo judeu, ou seja, a uma unidade universal. Nisso, não deixa de ter um significado especial o fato de o intervalo em que o golem retorna ao gueto ser precisamente de trinta e três anos, a idade de Cristo, pois isso evidencia de maneira clara outro dos motivos presentes em todo o texto: por um lado, a figura de Cristo como representante de uma ordem religiosa; por outro, a constatação de que seu reino, seja deste ou de outro mundo, é absoluto. Além disso, esse retorno constante une as diferentes gerações entre si, pois Zwakh, sem ir mais longe, fala de um encontro pessoal com o golem, igual ao que seu avô havia vivido. Os habitantes do gueto o viram com formas diferentes: oculto em roupas antiquadas ou como uma aparição paradoxal, que diminui ao mudar as leis da perspectiva, apesar de estar se aproximando de quem o vê (é, por exemplo, a forma como ocorreu o encontro com a mulher de Hillel, que também o percebeu como seu duplo, ou seja, como se encontrasse consigo mesma). Mas o importante, no entanto, é que o retorno constante do golem faz com que aquele que olha para o futuro não veja nada que já não tenha visto no passado.
Mas não é o golem a única coisa que se repete no texto: os destinos das pessoas também se repetem. Nenhum dos membros da família de Zwakh jamais abandonou o gueto, e ele mesmo, como prova da repetição constante das biografias nesse ambiente, conta a história da prostituta Rosina, cuja mãe levou outrora a mesma vida que ela, além de ter o mesmo nome e o mesmo rosto, a ponto de que até mesmo as relações que a jovem mantém com alguns jovens do gueto são um reflexo das que sua mãe já mantinha em sua época (ambas até deixaram um amante infeliz que, em sua melancolia, ganha a vida recortando silhuetas). Ou seja, o tempo passa no gueto sem trazer nada de novo, mas sempre o mesmo, por isso as vidas em qualquer ponto desse ambiente não avançam em linha reta, mas em círculo, e retornam sempre ao mesmo ponto. Pelo menos é isso que Pernath pensa, e assim se reflete também em suas divagações, que o devolvem sempre ao ponto de partida.
O retorno cíclico do golem pode ser interpretado também como um motivo de anseio de paz, e isso apesar de sua aparição sempre despertar medo e temor, mas sua origem demonstra certamente que se trata de um motivo por trás do qual se esconde o anseio por algo positivo: Zwakh relata a lenda do rabino que criou o golem para o serviço da sinagoga e, em definitivo, do povo judeu. O rabino pertencia a uma época em que os milagres ainda eram possíveis, o que equivale a dizer que o golem é testemunha de um tempo em que existia a possibilidade de outra realidade diferente da conhecida, e que no momento presente já não é mais do que um sonho. Além disso, esse anseio poderia ser interpretado como o desejo de reencontrar a pátria perdida, ou seja, como uma metáfora da busca do objeto que poderia conter essa carência. Mas esse desejo não pode ser cumprido: está encerrado em outro lugar, é inalcançável, um quarto sem porta. Nesse sentido, não é estranho que Pernath, ao se encontrar nesse lugar que parece reintegrar-lhe a unidade perdida, encontre precisamente aquilo que o conforma como sujeito: a divisão.
O marco do romance divide os dois estados conscientes do protagonista: o sonho e a vigília. À primeira vista, a aparição do golem só parece possível no sonho, mas, ao contrário do esperado, o marco do romance, ou seja, o estado de vigília, tem aqui a função de legitimar tudo o que aconteceu no estado onírico: no marco, o narrador conhece pessoalmente o indivíduo que foi objeto de seus sonhos, em cuja identidade ele se imergiu nesse segundo estado, no qual viveu um episódio passado de sua vida. Ou seja, o sonho não foi um sonho no sentido de uma vivência fictícia, mas um sonho "documental", ou o que é o mesmo, um sonho em que alguém se introduz através desse meio na biografia de um terceiro. O sonho é o segundo espaço em que se desenvolve a ação do texto, embora não por isso o menos importante: sem o sonho o narrador jamais teria empreendido a busca de Pernath e é esse encontro final precisamente que realça o caráter fantástico do romance. O marco legitima as experiências e reforça a veracidade dos elementos de cunho fantástico ao apresentar Pernath como uma presença real e permitir ao leitor que considere como verídico tudo o que aconteceu na esfera do sonho, estágio, aliás, que só se torna visível como tal no final da obra. O leitor poderia ter sabido desde o início que isso era assim, pois o autor utiliza dois tempos narrativos diferentes para cada um dos distintos níveis da narração: o imperfeito para o sonho, o presente para o marco. A possibilidade de confusão, no entanto, é dada pelo fato de que o nome do narrador não é mencionado em nenhum momento, faltando um traço diferenciador definitivo. Por outro lado, o estado de semi-inconsciência em que se encontra o narrador no início da obra permite que o narrador adote uma identidade alheia sem que o leitor perceba em nenhum momento inconexões de algum tipo. Somente no final do romance o leitor chegará a ver com clareza que o narrador confundiu seu chapéu com o de outro indivíduo e, em consequência disso, sonhou com um duplo.
A configuração do motivo do duplo, que também aponta para o paralelismo entre diferentes mundos e diferentes níveis de consciência, aparece também em todos os níveis narrativos, pois o eu narrador da história narrada dentro do marco é o duplo do eu narrador que aparece nele. Na realidade, o leitor acaba percebendo que podem ser distinguidos dois narradores no romance, e que podem ser adscritos também ao marco e à história que se narra dentro dele, mas a ambiguidade entre ambos dificulta a percepção, pois se produziu ao se unirem as diferentes instâncias narrativas. A identidade do narrador do marco se funde com a de Athanasius Pernath, o segundo dos narradores, cujo relato aparentemente começa bem no meio do segundo capítulo, mas sem que o leitor o perceba de modo algum, o que contribui para que ao longo de todo o texto se mantenha uma clara insegurança em relação à identidade da pessoa que narra, algo que também se justifica pelo fato de que o leitor também não consegue ter consciência se a ação que se desenvolve no marco é realidade ou sonho, pois os elementos que nele se integram, a luz da lua, a cama, ou a pedra que parece sebo, dificultam muito a separação entre uma esfera e outra. Em qualquer caso, o certo é que o narrador Athanasius Pernath com sua sensibilidade, sua existência de marginalizado social, suas difíceis experiências vitais e seu traumático passado é o perfeito narrador em primeira pessoa prototípico da literatura fantástica do fim de século.
Mesmo assim, há um elemento do marco que é necessário destacar por sua complexidade: o marco não é um marco normal, mas um marco fragmentado e alguns dos personagens da narração principal aparecem também nele (Pernath, Miriam, Schaffranek, Athenstädt e Loisitschek). Essa disposição do marco tem como finalidade provocar a insegurança do leitor, no sentido de que nunca consegue ter claro onde estão os limites da realidade e onde os do sonho. Por outro lado, além disso, alguns acontecimentos que ocorrem dentro desse nível aprofundam mais nessa direção, pois, sem ir mais longe, tudo o que Pernath experimenta após a leitura do livro de Ibbur também tem muito de onírico e graças a isso, precisamente, é como consegue transpor as fronteiras entre um mundo e outro. O encontro com o golem e a visão da casa da rua dos Alquimistas igualmente quebram os limites entre fantasia e realidade, gerando assim ficção dentro da ficção.
Outro elemento que concerne à forma narrativa é o fato de que a literatura de Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) tende a se desenvolver sempre a partir de dois polos: a amplificação da linguagem e o clichê. Essas amplificações são conseguidas fundamentalmente através da descrição de fragmentos da anatomia humana e sua transposição para objetos de uso cotidiano (basta o exemplo da mão e do trinco) ou para a combinação de âmbitos bem diferenciados, como plantas ou animais e aparelhos elétricos, que contribuem também para a construção de momentos de tensão e de horror. A recorrência a certos motivos deve ser interpretada, portanto, como uma característica própria do clichê. Todos os motivos utilizados no texto procedem do mundo do sobrenatural, do anormal, tanto em nível físico quanto espiritual, embora em nenhum momento se deixe espaço para o elemento sexual, um motivo muito próprio, no entanto, dos autores de sua geração, mas não de Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) , que, como elementos recorrentes em sua narrativa, costuma preferir os que analisamos até aqui: o jogo dentro do sonho, o sonho em si mesmo, a febre e seus efeitos e as imagens oníricas. Além disso, o autor joga frequentemente com o tópos da impossibilidade da descrição, um recurso muito produtivo na literatura fantástica. Mas esse uso abusivo dos clichês e a repetição constante dos mesmos elementos é, na realidade, uma amostra do gosto do autor pelo popular e, em definitivo, por tudo o que é característico dessa forma literária.
Quanto à estrutura, não deixa de ser marcante que o romance ganhe intensidade justamente no final, quando se vão atando certas pontas soltas, na frenética busca que o protagonista inicia para devolver o chapéu a Athanasius Pernath até fechar o círculo unindo passado e presente, realidade e lenda, e os dois Pernath, o do marco e o da narração emoldurada. Apesar de Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) se esforçar para fechar esse círculo, a obra resulta sumamente críptica em sua configuração dos personagens no entorno de uma Praga mágica, do desaparecido gueto judeu das lendas, que deixou na lembrança de tantos aquelas vielas tortuosas e úmidas pelas quais a cada trinta e três anos passeava um golem castigado eternamente a vagar sem descanso, um golem que representa a parte escura, pessoal e coletiva do gueto e seus habitantes. É precisamente a relação das obras de Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) com a cidade de Praga o que constitui o elemento autobiográfico como característica pessoal de toda a sua prosa, ao mesmo tempo em que, precisamente por isso, se torna um princípio estrutural enormemente relevante e único no conjunto da literatura de todo esse período singular.

