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Jean-Louis Chrétien – inversão de valores em Beckett
segunda-feira 7 de julho de 2025
O que está em jogo, como em muitos outros lugares, é uma Umwertung, uma inversão de valores: a descrição que Beckett Beckett BECKETT, Samuel (1906-1989) faz é de um rigor perfeito, está em perfeito acordo com a fenomenologia da linguagem contemporânea de sua obra, mas seu sentido se inverte completamente. Não há, e não poderia haver, idioleto, linguagem que seria apenas minha. Tenho minha dicção, meu fraseado, meu estilo, mas não minha própria língua. A fala, de fato, assina a pertença à humanidade e a uma comunidade linguística determinada, histórica. A apropriação da língua pela minha fala está no uso singular que faço dela. Mesmo o quase-idioleto de Finnegan’s Wake é feito de uma mistura de línguas e palavras existentes. Como dizia Bakhtin, as palavras estão sempre já habitadas, ocupadas. Não posso apagar os vestígios de seus antigos inquilinos. Ou como destacava Merleau-Ponty Merleau-Ponty : “Assim as coisas são ditas e são pensadas por uma Palavra e por um Pensar que nós não temos, que nos têm (...). Todos aqueles que amamos, detestamos, conhecemos ou apenas vislumbramos, falam por nossa voz.” Para pegar uma palavra do jovem Beckett Beckett BECKETT, Samuel (1906-1989) , há “polilogo” no próprio monólogo interior. E, para ir mais longe, o que para Mallarmé era o sonho do objetivo mais alto torna-se em O Inominável um pesadelo aterrorizante: “A obra pura implica o desaparecimento elocutório do poeta, que cede a iniciativa às palavras”, o que substitui “a direção pessoal entusiasta da frase”. Assim que falamos, mesmo que seja em nós e para nós mesmos, somos habitados: “devo supor que sou habitado (inhabited)” (I, 193, antes de uma mise en abîme vertiginosa). Mas essa alteridade sem limite no fundo de mim, e que me faz eu, pode ser afetada por um valor positivo, pelo caráter coral que ela dá a toda enunciação, mesmo que íntima, ou negativa, como em O Inominável: a descrição permanece, no entanto, invariante. O Inominável se junta a certas angústias stendhalianas de “claustrofobia”: “Um nome, um corpo, uma condição social são prisões. Mas suas portas não estão tão trancadas que não se possa pensar em escapar”, diz J. Starobinski sobre Stendhal. Esse sonho é apenas um sonho? É um desafio da obra: “Será o calabouço, é o calabouço, sempre foi o calabouço” (I, 137).
Passemos ao segundo ponto, a dimensão do ouvir dizer. A questão da origem de seu saber, qualquer que seja a fragilidade deste, é colocada pelo eu de O Inominável desde o início (I, 17-19). Tudo o que ele sabe sobre o mundo, sobre o homem e os homens, a luz, etc., foi-lhe “contado” por seus “delegados”, mesmo que a natureza da comunicação que ele pôde ter com eles permaneça misteriosa. Tudo o que ele sabe vem, portanto, do ouvir dizer. Algumas páginas adiante, em uma inversão completa, ele afirma que tudo isso foi por ele inventado, “sem a ajuda de ninguém, pois não há ninguém” (I, 29). Retorna-se mais tarde ao ouvir dizer: “Tudo de que falo, com que falo, deles o obtenho” (I, 62). Essa oscilação vai entre os dois sentidos da expressão “s’entendre dire” (ouvir-se dizer): é ouvir-se dizer por outro, ou ouvir-se dizer a si mesmo (o monólogo que se afeta a si mesmo, o retorno sobre mim de minha voz, quer seja proferida ou interior)? Pois o pronominal francês é aqui ambíguo, onde o inglês deve decidir: “Digo o que me mandam dizer, na esperança de que um dia se cansem de me falar (..). Agora ouço-me dizer (I seem to hear them say) que é a voz de Worm que começa, transmito a notícia, pelo que vale” (I, 98). E mais adiante: “Isso é para me embalar, é para me iludir, para que me pareça ouvir-me dizer (till I imagine I hear myself saying), eu enfim, a mim enfim, que não podem ser eles que falam assim, que só posso ser eu que falo assim” (I, 102). Aqui novamente, estamos muito próximos da fenomenologia da linguagem: não posso falar senão porque ouço e me ouço (os surdos-mudos são mudos por serem surdos), e Heidegger, depois de tantos outros, mostrou a reciprocidade do escutar e do falar, onde escutar é já falar, e falar, escutar ainda.
Aqui, O Inominável não procede a uma inversão dos signos e dos valores, mas a um corte e a uma segregação. Estamos na alternativa desastrosa onde, se falar é escutar, então sou apenas um fantoche repetindo as palavras dos outros, ou uma palavra outra, dizendo o que lhe mandam dizer tendo a ilusão de dizê-lo a si mesma, por um lado, e onde, por outro lado, se escutar é falar, estou na solidão acósmica do monólogo acósmico e espectral, ouvindo-me falar de uma palavra vã e sem objeto. Ou nunca sou eu quem fala, ou nunca há senão eu quem fala. O que desapareceu com esse corte é a possibilidade da resposta a uma outra palavra, e portanto também meu lugar singular no diálogo. O Inominável o afirma claramente: “Digo o que ouço, ouço o que digo (I say what I hear, I hear what I say), não sei, um ou outro, ou ambos, isso faz três possibilidades” (I, 210). O inglês acrescenta: pick your fancy, escolha o que lhe agrada. Mas na realidade oscila-se apenas entre as duas primeiras.
O que toma a forma em O Inominável de um verdadeiro delírio de influência, como os que a psiquiatria evoca (essas vozes que falam em mim em meu lugar, se eu tiver um eu e se eu tiver um lugar, o inimigo interior – “essas vozes não são minhas, nem esses pensamentos, mas de inimigos que me habitam” (I, 101)) não é senão a deformação notável de uma lei essencial da fala e da condição humanas. Um pouco como Alain dizia do mito de Er da República de Platão que o que parece fantástico e de outro mundo não faz senão descrever o que acontece a cada dia em nossa vida, a parábola de O Inominável não descreve uma condição estranha, mas descreve estranhamente nossa condição. Perguntar: Quem fala? equivale aqui a perguntar: Quem é o ventríloquo, e quem é o fantoche? O termo está na obra (I, 103).
Pode servir de transição para o terceiro ponto, sobre a relação dos personagens providos de um nome com o “eu” do monólogo. A ventriloquia existia entre os gregos antigos, mas se a palavra é paralela à que empregamos (eggastrimuthos), evocava-se antes, como nos ensina Plutarco, pelo nome de um ventríloquo célebre, que na época de Platão era um certo Eurícles. No Sofista, a propósito de uma tese filosófica que sua simples enunciação desfaz, Platão escreve de seus defensores: “Não precisam que outro os refute, mas, como se diz, abrigando, em seu seio, o inimigo e o contraditor, e essa voz que os repreende no fundo de si mesmos, eles a levam, à semelhança do bizarro Eurícles, para onde quer que vão”. Que melhor descrição desse movimento vertiginoso pelo qual em Beckett Beckett BECKETT, Samuel (1906-1989) a fala se desdiz e se renega sem fim do coração de si mesma, e que Bruno Clément reconduz à epanortose da retórica, mas uma epanortose renovada (retificada ou torcida, pick your fancy)?


Chrétien, Jean-Louis. Conscience et roman I. Paris : Minuit, 2009