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Cansinos Assens (RCA1001) – Apresentação das "1001 Noites"
quinta-feira 26 de junho de 2025
As mil e uma noites são tão universalmente conhecidas que dispensariam toda apresentação se não a exigisse um obrigatório e tradicional ritual de cortesia com o leitor. Dificilmente haverá no mundo inteiro quem não conheça essas surpreendentes histórias que a gentil Schahrasad contou em tempos remotos na distante Pérsia, sob a angústia da morte, com o alfanje de um sultão tirânico e misógino pairando sobre sua linda cabecinha, e que, como pássaros maravilhosos, animados por sua palavra incomparável, depois se espalharam em seu voo por todas as regiões da terra.
Essas histórias que Schahrasad, a persa, contou em sua língua harmoniosa ao neurótico rei Schahriar, vencido afinal sob o encanto de sua música acalentadora, essas histórias que salvaram sua vida e a de todas as mulheres do reino, passaram depois, apadrinhadas por ela, a todas as literaturas do mundo, e, repetidas por milhares de rapsodos em todas as línguas, doces ou ásperas, eufônicas ou rudes, em que os homens expressam diversamente a unanimidade de seus sonhos, e recolhidas e anotadas por diligentes escribas de todos os países, puderam chegar até nós incólumes, através dos séculos.
Em clara letra latina, nos belos e confusos arabescos da caligrafia islâmica, nos complicados ideogramas chineses e japoneses, nos hieráticos caracteres eslavos, todas as criaturas que sabem ler leram este livro, encantador e profundo, e até mesmo aquela parte da humanidade que, por sua desgraça, ainda não se elevou à consagração gráfica da palavra e permanece meio surda e meio muda, conhece de ouvir essas histórias que, antes de serem desenho, foram música, e antes de serem um livro, foram uma tradição e tiveram uma vida independente do signo escrito.
E a continuam tendo, como todas essas criações populares que já existiam antes do escritor que as recolhe e continuarão existindo depois dele, pois não lhe deveram sua vida nem foram as filhas, mas as mães, de seu livro.
As mil e uma noites, como a Bíblia, os poemas homéricos e alguns poucos livros mais — entre eles o Quixote —, são mais que um livro, ainda que se apresentem como tal, do mesmo modo que a paisagem é mais que um quadro e a alma mais que um corpo.
Contêm um espírito tão vital e humano, que escapa da letra e goza da própria ubiquidade, agilidade e sutileza do espírito.
São livros tão enormes e desmedidos, tão cheios de humanidade, que fazem esquecer autor e origem e parecem compostos — e assim o são de fato — pela humanidade toda, em uma maravilhosa colaboração, presidida pelo próprio gênio da espécie.
Nesses livros, o detalhe do escritor que lhes dá nome é o de menos, pois no fundo não passa de um mero escriba, já que são livros que existiram antes da letra e do livro, do mesmo modo que a vida existiu antes da história.
Esta encantadora Schahrasad, epônima dessas narrativas antiquíssimas, não é sua mãe, mas sua madrinha, e um personagem tão irreal quanto os de seus contos.
Schahrasad nunca existiu — chorai, poetas! —, assim como também não existiram Sulamita, a do Cântico dos Cânticos; nem Radha, a do GitaGovinda; nem nenhuma dessas mulheres sedutoras, demasiado belas para terem vivido entre os mortais.
Schahrasad é um eco e um nome; um dos mil nomes que, para não nos perdermos, damos às obras do povo, a essas obras que ninguém fez, por tê-las feito tantos.
Schahrasad é para As mil e uma noites o que o Faraó é para as Pirâmides.


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