Tal homem se desperta, pela manhã, em sua cama. Apenas se levantou, já dormiu de novo; se entregando a todos automatismos que fazem seu corpo se vestir, sair, andar, ir para o trabalho, se agitar conforme a regra cotidiana, comer, conversar, ler jornal – pois, em geral, é somente o corpo que se encarrega disso tudo –, feito isso, adormece. Para se despertar precisaria que pensasse: toda esta agitação está fora de mim. Precisar-lhe-ia um ato de reflexão. Mas, se este ato desencadeia em si (…)
Excertos de obras literárias, cênicas e gráficas, além de crítica literária, com foco no imaginal mitográfico, lendário e fantástico.
Matérias mais recentes
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René Daumal – Despertar e agir
1º de julho, por Murilo Cardoso de Castro -
René Daumal – história do espírito humano
1º de julho, por Murilo Cardoso de CastroFalei de uma função metafísica do pensamento humano, de uma necessidade inerente à condição humana do espírito. Devo então considerar como verossímil, até mesmo necessário, que se possa encontrar na história da reflexão do homem pelo menos traços de tentativas para desenvolver uma Metafísica como ciência absoluta.
Mas a história do espírito não é dirigida apenas pela tendência a pensar, a despertar. Se assim fosse, reconheceríamos, ao longo dos séculos, um progresso contínuo e indiscutível (…) -
René Daumal – Carta a si mesmo
1º de julho, por Murilo Cardoso de CastroBusco a verdade, portanto não a conheço. Como posso então dizer que desejo alcançá-la? Na verdade, não tenho o direito de afirmar nada sobre a verdade, nem mesmo que ela é desejável. Mas sofro, tenho medo e duvido, quero saber por quê, quero me libertar, quero compreender... Não se pode querer dormir. Se quero, é sempre antes permanecer acordado, ou melhor, despertar sem cessar. Ao despertar, constato que sofro, que mudo, que sou diverso, que não compreendo nada; e quanto mais desperto, mais (…)
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René Daumal – Memoráveis
1º de julho, por Murilo Cardoso de CastroLembra-te: de tua mãe e de teu pai, e de tua primeira mentira, cujo odor indiscreto rasteja em tua memória.
Lembra-te de teu primeiro insulto àqueles que te fizeram: a semente do orgulho estava semeada, a fratura reluzia, rompendo a noite uma.
Lembra-te das noites de terror em que o pensamento do nada te arranhava o ventre, e voltava sempre para roê-lo, como um abutre; e lembra-te das manhãs de sol no quarto.
Lembra-te da noite da libertação, em que teu corpo, desatado, caindo como uma (…) -
René Daumal – A Origem do Teatro de Bharata
1º de julho, por Murilo Cardoso de CastroO texto. - O Nâtya-Çâstra de Bharata é o mais antigo tratado de arte dramática hindu. Nâtya significa inicialmente dança e representação mimada, mas o teatro hindu, desde a origem, é a arte total. É dança, mímica, música, canto, poesia, arquitetura, encenação e até pintura. Em todas essas matérias, o Nâtya-Çâstra é a primeira autoridade, porque é um saber tradicional; recebe até o nome de Quinto Veda.
Entende-se por saber tradicional (veda, vidyâ) um corpo de doutrina que desenvolve o (…) -
René Daumal – Aproximação da arte poética hindu (2)
30 de junho, por Murilo Cardoso de CastroEspero ter mostrado por estas notas que a poesia, para os Hindus, se não é senão um meio a serviço do conhecimento, é também uma das mais altas atividades que o homem possa exercer. «O estado de homem é difícil de alcançar neste mundo, e o conhecimento então é muito difícil de alcançar. O estado de poeta é difícil então de alcançar, e a potência criadora é então muito difícil de alcançar .» A operação poética — da qual a gustação poética é o reflexo — é um verdadeiro trabalho do poeta, não (…)
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René Daumal – A analogia poema-homem
30 de junho, por Murilo Cardoso de CastroO Sabor é a essência, o «si» (âtman) do poema. Assim como no homem, no poema o âtman se manifesta por certas «virtudes» (guna), que se chamam também «funções, atividades específicas» (dharma) do Sabor. Elas se classificam em três categorias: suavidade, que «liquefaz o espírito», o amolece; ardor, que o «incendeia», o exalta; evidência, que o ilumina «com a rapidez do fogo na lenha seca». Dessas três categorias derivam os diferentes tipos de emoções poéticas .
Assim como o estado interior (…) -
René Daumal – O Sabor
30 de junho, por Murilo Cardoso de CastroMas qual é o conteúdo dessa «sugestão», o que ressoa nessa «ressonância» que é o sentido mesmo do poema? Em outras palavras, o que é, em sua essência, a poesia? Depois de ter refutado um certo número de definições propostas por outros autores , Viçvanâtha diz: «A poesia é uma palavra cuja essência é sabor» . E explica o que é o «sabor» (rasa): «Uma emoção fundamental, como o amor, manifestada pela representação de suas causas ocasionais, de seus acompanhamentos sensíveis e de seus efeitos, (…)
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René Daumal – Os poderes da palavra
30 de junho, por Murilo Cardoso de CastroEntende-se que aqui não falamos senão dos usos retóricos e poéticos da linguagem. Na liturgia e na arte encantatória intervêm ainda outros «poderes» da linguagem: virtudes dos timbres, articulações, acentos, metros, modos de recitação, etc., que dependem da ciência dos mantra; esta é reservada a um pequeno número, enquanto a poesia se dirige a todos aqueles «que têm um coração» (sahridaya). Não falamos tampouco da poesia védica, fruto de uma arte «não humana».
Nos textos didáticos, os (…) -
René Daumal – A doutrina da linguagem
30 de junho, por Murilo Cardoso de CastroAntes de tentar seguir os estetas hindues nos últimos mistérios poéticos, onde a operação verbal é a imagem de um trabalho sobre si mesmo, é preciso lembrar a base artesanal da arte hindu. Para o Hindu, a expressão da personalidade não tem nenhum valor artístico. O belo é o poder comovedor do verdadeiro . O artista é antes de tudo um artesão, que tem por tarefa fazer certos objetos segundo certas regras e com um certo objetivo. Deve conhecer antes de tudo a matéria que tem que trabalhar. A (…)