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Sloterdijk (2007:12-13) – intoxicação voluntária

quarta-feira 16 de dezembro de 2020

Quando falo de «intoxicação voluntária», não penso numa experiência de vivissecção no próprio corpo   nem na psicose romântica da psicanálise francesa. Não tento aproximar-me de Camus  , que afirmava que só existia um   problema filosófico real, o suicídio, nem tão-pouco de Novalis  , autor   da observação instrutiva de que o único acto «genuinamente filosófico» consiste em pôr termo aos nossos dias. Refiro-me mais a um fenômeno   que pertence à história   da medicina moderna, o movimento homeopático, que remonta a Samuel Hahnemann. Em 1796 — há mais de dois   séculos —, essa mente surpreendente formulou pela primeira vez o princípio do remédio terapêutico efectivo. Desse modo, foi um dos primeiros curadores a tratar o nervosismo moderno dos seus pacientes com adequadas propostas médicas. Estava convencido de que o médico era obrigado a intoxicar-se a si próprio com tudo   o que administrasse mais tarde aos enfermos. E desta reflexão que procede o conceito de «intoxicação voluntária»: quem quiser ser   médico precisa, previamente, de ser   cobaia.

O motivo mais profundo desta viragem para a experimentação com o próprio corpo encontra-se na ideia romântica de uma ligação activa entre imagem   e Ser. Hahnemann considerava que os efeitos da dose no indivíduo são e no enfermo se espelhavam. Esta é a origem da ambiciosa semiótica da medicação farmacológica. A grande reflexão optimista da medicina romântica pertence essencialmente à homeopatia; mais ainda, reside precisamente na ideia de que devemos presumir uma relação reflexiva entre o que é a enfermidade como fenômeno global e os efeitos que um meio puro gera num corpo são. A homeopatia pensa ao nível de uma imunologia especulativa. E, na medida em que os problemas imunológicos são cada vez mais considerados como aspectos prioritários da terapêutica e da sistêmica do futuro, estamos aqui perante uma tradição muito actual, por muito que o funcionamento das doses homeopáticas permaneça envolto num véu obscuro.

De acordo   com este ponto de vista, a expressão que dá o título ao meu livro   insere-se mais na corrente da filosofia   naturalista romântica: dito de forma   mais concreta, tem mais a ver com a metafísica   alemã da enfermidade do que com o discurso   francês sobre o corpo fragmentado. Mas, mais ainda, tem a ver, naturalmente, com Nietzsche  , que jogou por vezes com metáforas homeopáticas e, mais ainda, imunológicas. Não é uma casualidade se ele apresenta o seu Zaratustra dizendo à multidão:

«Inoculo-vos a loucura», para já não falar da sua duvidosa sentença «o que não me mata. toma-me mais forte», expressão que devemos entender, sob todos os aspectos, num sentido   imunológico. Nietzsche entendia toda a sua vida   como uma espécie de inoculação de substâncias tóxicas da decadência e procurou organizar a sua existência como uma reacção integral de imunização. Não foi capaz de se dar por satisfeito com a ingenuidade blindada dos últimos homens, graças à qual estes se protegem das infecções dos seus contemporâneos e da História. Nas suas obras, apresentava-se, portanto, como um terapeuta da provocação que trabalhava com intoxicações concretas.

[SLOTERDIJK, Peter. O Sol e a Morte  . Investigações Dialógicas. Lisboa: Relógio D’Água, 2007, p. 12-13]


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