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Sampaio Bruno – Pensamento herdeiro dos gnósticos?

domingo 23 de fevereiro de 2025

Excertos do estudo de Maria Helena Varela, "O Heterologo em língua portuguesa"

Entre o racionalismo científico, o paradigma positivista ao qual mais ou menos se manteve fiel em O Brasil mental, e o irracionalismo dos poetas e filósofos românticos do século XIX, a herança heterodoxa dos pensadores gnósticos parece-nos de destacar nesta opus magnum. De fato, um saber hermético de inspiração gnóstica parece ter penetrado o corpus científico dos séculos XIX e XX, como afirma Gilbert Durand Durand Durand, Gilbert (1921-2012)  [1], manifestando-se até nos sistemas mais positivistas. Para este pensamento hermético e esotérico, qualquer interpretação filosófica ou científica dos símbolos, apenas desloca o mistério, sem jamais o decifrar, adquirindo todo o conhecimento um sentido meta-racional e intuitivo, como pode verificar-se em Sampaio Bruno Sampaio Bruno .

Neste esboço de teodiceia, José Pereira Sampaio parece-nos demasiado próximo das fontes gnósticas [2], sobretudo no que se refere à problemática da cisão misteriosa, do tempo e do mal. Para as correntes gnósticas dos primeiros séculos do cristianismo, Deus é um ser obscuro e incognoscível, contendo o germe do mal e do erro.

Um seu executor subordinado, o Demiurgo teria criado este mundo errôneo e instável no qual uma fração da própria divindade caiu, precipitando-se no exílio. Num mundo criado por engano, num cosmos abortado, os principais efeitos serão o mal e o tempo, sendo este a imitação deformada da Eternidade. Daí a rejeição do tempo e da história no gnosticismo, tendo-se esforçado a patrística por recuperá-la através de uma filosofia racional e providencialista, inspirada no messianismo judaico e no racionalismo dos gregos.

Para o gnosticismo o mundo é um exílio, e a existência um mal. Precipitado no mundo, agrilhoado a um corpo, o homem tem necessidade de se libertar, porque, apesar de tudo, sente-se participante da divindade, só provisoriamente no exílio, como consequência da queda. Se conseguir retornar a Deus, o homem não só se reunirá com o seu princípio e a sua origem, como também contribuirá para regenerar essa mesma origem, para a libertar do erro original. Embora prisioneiro de um mundo e de um tempo decaídos, o humano sabe-se investido de um poder sobre-humano. Por isso, tal como em Sampaio Bruno Sampaio Bruno , para os gnósticos a divindade só poderá superar a queda inicial, graças à cooperação do humano, transformando-se o homem gnóstico num Übermensch. O que caracteriza o poder deste super-homem é que só alcança a salvação através do conhecimento do mistério do mundo (gnose). Ao contrário dos que estão presos à hyle (matéria), os hylicos, sem esperanças de salvação, aqueles que pertencem ao espírito, pneumatikoi, aspiram à verdade e à redenção cósmica. Por isso, e ao invés do cristianismo, o gnosticismo não é uma religião de escravos, mas de senhores, de profetas eleitos que visam à reintegração final no todo. Só o super-homem gnóstico compreende que o mal não é um erro humano, mas sim o efeito da cisão primordial, e que a salvação só se efetiva pelo conhecimento (gnose), a religião da razão de que fala o pensador portuense em Os cavaleiros do amor [3].

É difícil evitar a tentação de procurar uma herança gnóstica no pensamento de José Pereira de Sampaio, como em grande parte dos autores românticos do século XIX. Aliás, a origem cátara, logo, gnóstica do amor no Ocidente — da poesia cortês ao romantismo — entendido como renúncia, relação puramente espiritual, é por demais conhecida; sendo gnósticos os princípios do idealismo romântico que fazem do tempo e da história, elementos reintegradores do homem no Espírito absoluto. Mas é sobretudo no espírito iniciático e saber esotérico que atravessa o pensamento do século XIX em geral, e o heterologos em Portugal em particular, que a herança gnóstica mais se manifesta. Em A Ideia de Deus, Sampaio Bruno Sampaio Bruno chega a referir-se especificamente ao gnosticismo, na tentativa de explicitar a reintegração do homem no Espírito Puro:

Para o gnosticismo, relembra Amorim Viana que “o Universo decompõe-se em uma série de Eons ou entes distintos, criados por via de emanações, das regiões celestes para as regiões terrestres. Nessa escala de seres, Cristo ocupa um lugar superior ao homem, e está constantemente a elevar Sofia ou Acansot. representante da alma humana, do todo terrestre, onde se submergiu, até ao Pleroma ou abismo das perfeições. O Sumo Bem ou Deus reside nesse Pleroma, no Bythos, no Eon primitivo. O derradeiro Eon é a matéria eterna como Deus, mas essencialmente má”.

Nesta nova concepção, a matéria não é eterna como Deus e as emanações divinas não vão prevaricando à medida que se afastam da origem. Pelo contrário, vão intensificando, maiores sendo. No átomo primo, a revelação divina é a direção do movimento, o qual veio logo do anelo do regresso ao espírito puro. No animal, a revelação é instinto. No homem, a revelação é razão. E, do átomo ao animal e do animal ao homem, a matéria desmaterializou-se; espiritualizou-se; aproximou-se do ponto de chegada; libertou-se; tendeu a voltar ao estado puro, anterior à diferenciação inicial do homogêneo infinito. Assim, a relatividade convergiu, novamente, para o absoluto. [4]

Do átomo ao animal, do animal ao homem, a matéria des-materializa-se, ou melhor, espiritualiza-se. Por isso, cabe ao homem a suprema tarefa de libertação num processo cósmico, soteriológico. Ser para o mal e para a morte, é também homem de desejo, o pastor do ser, parafraseando Heidegger; aquele que traz no olhar visível a sombra invisível do absoluto, a crença e a esperança saudosa nesse paraíso perdido, que dormita nos arquétipos mitogenéticos da memória.

Se A Ideia de Deus pretende refutar o pensador solar e ortodoxo que, em certa medida, foi Amorim Viana, para o qual Deus é permanente e imutável, est nonfit [5], José Pereira Sampaio reafirmará aí as metamorfoses do tempo, a que chamamos devir, os caminhos múltiplos das heterodoxias. “Se Deus existiu e Deus existe, Deus existirá! Redimindo o diferenciado na consumação dos séculos, como o foi antes dos séculos: — a homogeneidade do absoluto será” [6]. E este é o mistério heterodoxo do pensamento contemporâneo português. A fusão do uno e do múltiplo, do homogêneo e do heterogêneo constitui o aspecto essencial das heterodoxias, simbolizadas no mito da serpente, expressas na dialética triádica do tempo em Sampaio Bruno Sampaio Bruno . Caberá sempre ao homem, poeta ou profeta, cavaleiro do amor ou da fé, essa tarefa de vislumbrar no tempo a dinâmica que lhe permitirá pensar, embora não compreender o absoluto e inominável a que não cessa de aspirar, perante a sua condição decaída, o seu exílio existencial. O tempo é esse grande escultor cósmico, tempo de metamorfose, rio heraclitiano, devir-progresso que, ao atravessar uma história messiânica, tomou tantas vezes possível o impossível, transcendendo-se no milagroso e no mito, no meta-lógico e no paradoxal.

 


[1Durand, Gilbert. Science de l’homme et tradition. Paris, Berg, 1979.

[2Durante o império grego de Alexandre e seus sucessores, os ideais e práticas religiosas da índia e da Pérsia (Zoroastro) tinham-se expandido para o Ocidente; misturando-se com elementos gregos e minóicos, formaram um sincretismo religioso através do mundo mediterrâneo, cujo resultado mais notável foi o conjunto de doutrinas e cultos conhecidos por Gnosticismo. A este todo sincrético misturam-se as influências do judaísmo arcaico e do cristianismo primitivo, podendo falar-se de relações de filiação entre gnose e Kabalah. Na maior parte das vezes, só se conhecem as doutrinas gnósticas através dos textos dos doutores da Igreja que as denunciavam como heresias, tais como Santo Irineu e Orígenes, entre outros. A gnose constitui uma das formas mais antigas de racionalidade mítica e mística, exercendo influência em certos autores românticos do século XIX. Em Sampaio Bruno, o acesso às fontes gnósticas ter-se-ia eventualmente processado através do judaísmo e da Kabalah, domínios esotéricos a que o autor teve acesso, mais do que através dos textos originais ou dos padres da Igreja.

[3O tema básico do Gnosticismo era a fuga do mundo material — que se considerava mau, criação de um deus inferior, o demiurgo — para outra esfera onde seria possível usufruir a vida pura do espírito, esfera considerada como a centelha do divino no homem. A forma de ascender a este reino espiritual, mais elevado, constituía a preocupação dos vários cultos gnósticos, acreditando-se que era atingida pelo conhecimento (gnose). Maniqueístas, os gnósticos acreditavam que a salvação se destinava ao espírito do homem, não ao corpo, à matéria. Só libertando-se desta, princípio do mal, o homem pode descobrir a vida espiritual e ter acesso à salvação pelo conhecimento. Em relação aos hylicos, seres ligados à matéria (hyle), sem esperança de salvação, os pneumáticos (pneumatikoi) são os únicos que poderão aspirar à verdade, logo à redenção através do conhecimento dos mistérios do mundo. Se o mundo é o reino do mal, o gnóstico odeia a sua natureza material, despreza o corpo, ascendendo ao espiritual através do conhecimento do próprio mal, da negatividade, única forma de regeneração cósmica.

[4Sampaio Bruno. A Ideia de Deus, p. 346-347.

[5Op. cit., p. 360.

[6Op. cit., p. 361.