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Sampaio Bruno – O Tempo

domingo 23 de fevereiro de 2025

Excertos do estudo de Maria Helena Varela, "O Heterologo em língua portuguesa"

A tese da perda da onipotência divina, por mais misteriosa, constitui o aspecto mais singular desta ontoteologia obscura, sendo a pedra de toque de uma viagem sófica em que o tempo, na sua dialética triádica, e o mal inerente a todas as criaturas propiciam o regresso final ao uno e homogêneo, num terceiro ekstase temporal. Por isso, um Tempo com maiúscula, hipostasiado, aparece em Bruno, já que é o devir que propicia a redenção, em que todos os existentes, incluindo o próprio Deus, se libertam do mal, da degradação espacial, da perda da onipotência, para ascenderem à unidade cósmica, à luz, à liberdade, e à paz:

Portanto, no princípio era o Tempo homogêneo, infinito, contínuo, imutável, absoluto, necessário (...). Este homogêneo, contínuo, infinito, absoluto, necessário, não permanece, porém. E este é o mistério indecifrável (...). No segundo momento do começo o homogêneo diferenciou-se, diversificou-se. Uma parte do Tempo alterou, restou, pois, Tempo puro mas diminuído, da outra parte, que é Tempo alterado. Tempo puro ou Tempo que chamamos. Tempo alterado ou Espaço que chamaremos. O Espaço é que já não é absoluto, porque é derivado, está condicionado ao tempo puro de que procedeu.

O Tempo puro, inicial, completo, Deus, é a Eternidade; e o Espaço é que se não conserva “similaire et imobile”. Como o espaço é a introdução do heterogêneo (...) uma matéria sutilissima existe como a concreção primária do tempo, espaço chamado [1].

A descontinuidade e diferenciação material devem-se à instabilidade do homogêneo, sendo o regresso ao tempo puro, inaugural, o supremo movimento de redenção e espiritualização. Tempo inaugural decaído, ou tempo de retorno ao uno, o tempo é a Eternidade pressentida pelos eleitos na intuição fugidia, ou ansiada no erro e no mal, que são ainda tempo refratado.

Este mistério inaugural determinará a rejeição da teologia tradicional e da sua tese fundamental da criação ex nihilo. Porque se a criação não é acessível à razão, a cisão será sempre misteriosa, enquanto queda da própria perfeição, como aliás toda a relação entre Deus, homem e universo na teodiceia mística de Sampaio Bruno Sampaio Bruno . Toda a razão supõe o irracional ou meta-racional, o oculto e a revelação. Sobretudo, após o exílio, não mais repugnarão ao pensador noturno que é Bruno as extrapolações misteriosas e obscuras, os hieróglifos místico-sóficos, mais acessíveis à visão profética do que ao olhar racional.

A dialética temporal em Sampaio Bruno Sampaio Bruno é a dialética paradigmática das heterodoxias, simbolizada no mito da serpente de Migdar em que a cabeça morde a cauda, ou a sutura entre os pontos alfa e ômega, o primeiro e terceiro ekstases temporais, o desejo e a esperança dos saudosistas. O mistério do ser não é o da criação ex nihilo do cristianismo, mas o da cisão ôntica, misteriosa e heterodoxa, quase herética, o do tempo e o do mal que esta propicia, tomando-se estas três coordenadas uma espécie de cifra existencial que, através do devir, permitem a redenção total, o retorno ao uno e homogêneo. Sampaio Bruno Sampaio Bruno é, de fato, o nosso primeiro filósofo do tempo. Com ele, como dirá Marinho [2], ocorre tardiamente em Portugal “a infinitização do tempo”. Uma história outra, uma nova humanidade parecem anunciar-se no messianismo genérico deste autor, mais tarde desenvolvido em O Encoberto; um tempo profético e escatológico que culminará num tempo transfigurado, em que o homem se tomará senhor da evolução cósmica.

Ao reformular os anelos metafísico-místicos do existente humano, a aspiração ao absoluto desse nômade exilado no deserto do mal, Bruno pretende sobretudo demonstrar a existência de Deus, para além das provas cosmológicas, ontológicas e psicológicas ortodoxas tradicionais. Mesmo questionando a vocação metafísica dos portugueses na sua tradição filosófica débil, acabará por aceitá-la como um imperativo místico-sófico, implícito numa antropologia situada da portugalidade, ou a crença nesse etwas que nos transcende e faz crer no impossível.

Metafísica da redenção, a filosofia de Sampaio Bruno Sampaio Bruno vincula na cisão misteriosa, não apenas Deus e o homem, mas todos os seres, sendo a redenção essencialmente antropo-cosmo-teológica. “O fim do homem neste mundo é libertar-se a si, libertando os outros seres” [3], ou como Novalis escreveu “o fim do Homem é ajudar a evolução da Natureza” [4]. A revelação, à qual só os filósofos e poetas visionários, os cavaleiros do amor têm acesso, será um dia manifesta à razão; os milagres e os prodígios serão então argumentos, e a fé emergirá do cálculo. Tudo se ordena para a reintegração final no homogêneo, para a redenção unificadora, limitando-se por enquanto esta sofia profética a interpretar os hieróglifos da natureza e da história. Em O Encoberto, unindo os destinos da história da humanidade e da história da pátria, Sampaio Bruno Sampaio Bruno anunciará, então, através de um messianismo antropológico e universalista, e de uma filosofia da história teleo-escatológica, a definitiva mensagem, a verdade última e suprema: “O limite ideal da realidade é a unidade. (...) A glória do futuro será conseguir a unidade na liberdade. Esta é que foi a perpétua esperança. Ex-pressa-a a palavra inefável: Paz” [5].


[1Sampaio Bruno. A Ideia de Deus. Porto, Lello & Irmão, 1987, p. 290-291.

[2Marinho, José. Verdade, condição e destino no pensamento português contemporâneo. Porto, Lello & Irmão, 1976, p. 88.

[3Sampaio Bruno. Op. cit., p. 349.

[4Op. cit., p. 351.

[5O Encoberto. Porto, Lello & Irmão, 1983. p. 333.