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Sampaio Bruno — O Encoberto
domingo 23 de fevereiro de 2025
Excertos do estudo de Maria Helena Varela, "O Heterologos em língua portuguesa"
Enveredando cada vez mais por vias heterodoxas e esotéricas, Sampaio Bruno Sampaio Bruno passa de A IDEIA DE DEUS a O ENCOBERTO, obra em que a sofia meta-racional, o teurgismo profético se transforma em escatologia, messianismo universal, partindo sempre dos arquétipos sebastianistas, latentes na nossa mitogenia. A teleologia de um tempo triádico que, na sua dialética circular faz coincidir os pontos alfa e ômega na apoteose final da reversão à unidade originária, culmina aí numa escatologia messiânica, numa história do futuro, esse sonho perpétuo de redenção que sempre animou a alma lusíada, por mais dilacerado que o seu tecido social se encontrasse.
Uma filosofia da história escatológica, uma antropologia, por mais situada, universalista, emergem desta obra, na sequência do esboço teodiceico já traçado em A IDEIA DE DEUS. Partindo da mitogenia lusíada nos seus anelos sebastianistas, Sampaio Bruno Sampaio Bruno assume este mitologema como uma forma de messianismo genérico, coletivo e universal. O Messias não é apenas o rei desaparecido em Alcácer Quibir, como afirmavam as superstições populares. "O herói não é um príncipe predestinado, não é mesmo um povo. É o Homem" [1], dirá, desenvolvendo a perspectiva antropo-teocêntrica já esboçada em A IDEIA DE DEUS, onde parafraseando Novalis, atribuia ao humano uma libertação soteriológica.
Nesta segunda navegação gnósica, sofia e profecia mais se fundem "no ostensivo paradoxo" em que "o sebastianismo coincide com o filosofismo" (Op. cit., p. 333), tornando-se o mito um humano saber, numa filosofia da história em que a paz e a redenção cósmica são conexas. O terceiro ekstase temporal, o momento de regresso ao todo-uno, coincide com esse império espiritual, o Quinto Império, em que finalmente "a paz será". Um Tempo hipostasiado, reaparece nesta obra profética e sibilina como categoria ôntica fundamental: o tempo futuro do retorno à unidade, em que uma história do futuro passa a ter sentido.
As coordenadas simbólicas do heterologos estão bem expressas em O ENCOBERTO, dos messianismos judaico-cristãos e arcanos célticos, à tradição lendária e aspirações redentoras do povo. Em parte, é dessa teia mitogenética que se sustenta, ainda que de modo enigmático, a estrutura sócio-cultural do ser português, nas suas aspirações metafísicas, e na epopeia das descobertas, senão mesmo nos seus fragmentados e complexos ideais políticos.
Essencialmente antropológico, o messianismo sebástico de Bruno, como mais tarde o de Pessoa em Mensagem, ultrapassando os messianismos nacionalistas e as superstições populares, assume-se universalista e redentor. A libertação do homem, já implícita emA IDEIA DE DEUS, é agora o percurso escatológico para a liberdade na unidade, a paz. No seu voluntarismo ativo, é sempre o homem quem se auto-liberta pela tomada de consciência da sua própria liberdade, libertando com ele todos os outros seres. A história passa a ter como telos, a redenção do diferenciado através do homem. Assumindo-se como redentor, "um Buda experimentalista e dialético", "um Cristo cujos prodígios sejam argumentos" [2], o homem-Messias realizará a profecia, já expressa no programa do Bandarra, "tirará toda a errônea (...) fará paz em todo o mundo" [3]. Afirmando que o Messias é o Homem, Sampaio Bruno Sampaio Bruno formula pela primeira vez a ideia de uma antropologia escatológica como centro da filosofia da história portuguesa.
Criticando Oliveira Martins para quem o sebastianismo era uma prova póstuma da nacionalidade, Bruno dirá que, "a sua teoria da história é quimérica ao pretender paradoxalmente, erigir o sebastianismo à altura de idiossincrasia moral da gente portuguesa" (Op. cit., p. 227), já que sempre que as calamidades públicas excitavam os espíritos, este fenômeno de insânia coletiva parecia exacerbar-se:
Oliveira Martins, na sua fantástica teoria histórica, confundiu dois fatores diferenciados: o do sebastianismo e o do messianismo de Portugal; o primeiro considerado irrisório, e pertença de maneáticos; o segundo reputado intangível como inviolável timbre da dignidade coletiva. Um, além da adaptação de profecias estranhas, derivava das trovas do Bandarra; o outro fundamentava-se, além da tradição nacional anônima, no juramento de D. Afonso Henriques (Op. cit., p. 252).
De origem judaica, o messianismo de Bruno transcende, na sua universalidade, um sebastianismo popular estreito, enquanto mera crença obscurantista no rei desaparecido-desejado. Porque "o advento do Messias e o advento da humanidade são conexos" (Op. cit., p. 249), dirá. Por isso, "a nossa Lusitânia consumará no ideal de Quinto Império, o pensamento de Daniel, fornecendo o tipo de palingenesia social, que o rabinismo moderno substitui à noção primitiva" (Op. cit., p. 248). Remetendo às profecias de Daniel, em Portugal, o ideal de Quinto Império renasce de Vieira a Pessoa, passando por Bruno "em detrimento e com discrepância da ortodoxia católica, flageladora de castigos" (Op. cit., p. 247).
O sebastianismo de Sampaio Bruno Sampaio Bruno emana da concepção de um povo messias, superior à de um homem-messias, ou à de um rei-encoberto. E esse povo nem sequer é a Israel do judaísmo, ou o Portugal decadente, mas toda a humanidade que aos poucos se agiganta, precipitando o devir, e avançando para a libertação final, na paz, unidade e liberdade. A era messiânica é a era do futuro, o terceiro ekstase da dialética triádica do tempo, logo, esta filosofia da história escatológica sustentar-se-á sempre mais das histórias do futuro do que da res gesta do passado, feita de descobertas e névoas. Apesar do "encoberto cenário da nossa existência nacional", o autor não profetiza em O ENCOBERTO um novo império marítimo ou continental, capaz de superar os despojos a que ficamos reduzidos. Trata-se de um império espiritual, já anunciado nas profecias, desse sonho messiânico-judaico-paraclético que dormita nos arcanos mitogenéticos e se desenvolveu na nossa paideia, da história do futuro do padre Antônio Vieira à saudade de Pascoaes, ou à Mensagem de Pessoa. Religião da Lusitania, como dirá este último, no messianismo sebástico, a profecia, a utópica e ucrônica quimera, ganha foros de historicidade, "o sebastianismo coincide com o filosofismo", como se "só o mito dissesse a verdade, fosse o espelho alegórico das verdades eternas que são as nossas". [4]
Para Sampaio Bruno Sampaio Bruno as ideias nascem puras, brotando dos arcanos mais remotos do inconsciente coletivo português. Nelas projetou a desmesura da sua timidez rebelde; aí consumou a passagem do positivismo ao esoterismo, das ortodoxias às heterodoxias, fascinado pelas profecias escatológicas e visionarismos esotéricos, as veredas transversais na procura de um ser que, embora impondo-se à nossa finitude, se furta à nossa razão. Porque o que José Pereira Sampaio essencialmente nega e renega neste mundo e nesta história em que o mal e o tempo ora nos ferem, ora se apagam de forma cíclica, é que tudo possa reduzir-se a sistemas, fórmulas, leis, teorias ou ortodoxias, mais ou menos positivas. Todos os que como ele pretenderam escapar à opacidade do real, transcendendo o ofício de existir, acabaram por pactuar com o meta-racional e o transcendente, com os enigmas e os abismos, supremo perigo e suprema salvação.
Filósofo da negação e da negatividade, Bruno partirá sempre da queda, da cisão, do caos, das origens misteriosas, para a libertação cósmica do mal através do tempo, em que o humano se assume num messianismo genérico e redentor, voluntarista e universal, acelerando a vinda da espiritualidade plena, da unidade e da paz. O mistério do seu filosofar heterodoxo está, pois, nessa negatividade radical, mais do que na positividade frágil do seu pensamento. Os abismos do mal, do erro e do nada são os enigmas que, afetando o humano, o espicaçam na procura messiância da verdade, na epopeia insituada rumo ao todo-uno. Mais do que ser para o mal, o homem é o libertador da espécie, de todos os seres e da própria divindade, transformando o tempo degradado num tempo redentor, transfigurado, numa fruição fugaz da verdade, entre o mito e a profecia. Aos cavaleiros do amor, a essa humanidade-messias, os eleitos da paideia lusíada, poetas-profetas de uma verdade numinosa e fugidia, cumpre a missão teleo-escatológica de anunciar a paz e precipitar o devir.
No pensar teleo-escatológico de Sampaio Bruno Sampaio Bruno , mais se desvanecem as fronteiras entre o lógico e o mítico, a razão positiva e a revelação mística, numa filosofia da história, em que mitemas e filosofemas se enleiam, ou tão só esse heterologos que começa a exprimir-se em português.


[1] Sampaio Bruno. O ENCOBERTO. Porto, Lello & Irmão, 1983. p. 332.
[2] A IDEIA DE DEUS, p. 359.
[3] O ENCOBERTO, p. 333.
[4] Veyne, Paul. Acreditaram os gregos nos seus mitos? Lisboa, Edições 70, 1987. p. 145.