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William Blake, manichéen et visionnaire

Pierre Boutang – Blake, guerra eterna

terça-feira 8 de julho de 2025

Adiemos a análise desse vocabulário colérico das epopeias ou profecias, sem esquecer que se trata antes de tudo   de sua forma   descrita como essência do poema; essa forma é também o primeiro enunciado no programa dessas obras, seu primeiro conteúdo dogmático: "immortal" ou "eternal" war, guerra   cujas armas e movimentos veremos se definirem como "intelectuais". Tal intelectualidade, se lembrarmos do irracionalismo e antirracionalismo fundamentais do bardo doutrinário, surpreende a princípio; mas é ele mesmo, ainda, quem decreta que uma lágrima é "intelectual"; além de seu saber menos que superficial do neoplatonismo, ele redescobre uma inteligência que transcende a razão. A grande máquina   mais que o artifício técnico dos "States" distintos de toda individualidade ou personalidade, fornece então um   conteúdo, um sentido  , à guerra intelectual proposta; aí uma analogia   com Dante  , mais que com Homero, se esboça, ainda que as almas separadas guardem antes do Juízo e apesar da ausência de um corpo   passível, sua relação unívoca com esses corpos — o que não ocorre com os "States" da gigantomaquia blakeana: estes se tornam qualquer coisa, mudam de sexo e valor, passam (em todos os sentidos) uns nos outros. O que conservam está em sua relação funcional, seu apenas dialético e cru motor, o da contradição, que Hegel não descobriu e que tantos versos de Blake confessam de súbito e abstratamente, na potência rítmica e mítica que falta, desde a origem, a Hegel.

Porém é preciso acrescentar imediatamente, sob pena de errar sobre a impessoalidade dos "States", que seus nomes singulares e estranhos, onde o ridículo e a sobrecarga são desafiados, são arrebatados e penetrados pelo formidável ritmo que persuade, e possuem, paradoxalmente, uma potência substancial, uma força de individuação (das quais o poeta gritou que ultrapassam a individualidade) que nem sempre têm, apesar de nossa longa habituação, os nomes próprios homéricos ou dantescos. Seu sentido é muitas vezes incerto; gregos quase sempre, não o são mais que Blake soube o grego — em seu ponto de pretensão extrema e após as lições do squire Hayley — às vezes prestam ao riso   quando são celtas ou pseudo-hebraicos? Sim. Mas não se ri mais, e se recorda, desde que se faça passar sílabas bizarras pelo "gueuloir" flaubertiano: até mesmo bowlahoola, por exemplo, diante da quadragésima prancha de Jerusalém; é que a medida do verso e a cor das vogais curvaram efetivamente a noção, na falta da pessoa que não existe; uma gravura poderosa soma-se aos fonemas de Urizen e Luvah, e eis o gigante instalado no Imaginário, satisfeito do desejo de crer na ideia "ato   da potência como potência", que é o movimento. Isso se move e fala   na estrofe de Blake; (ter-se-á notado que as mais impressionantes histórias em quadrinhos de hoje se orquestram numa onomástica insólita, que as torna tão violentas quanto absurdas?)

Essa imaginação não teria um efeito   duradouro, nem Blake seria um imenso poeta genialmente teimoso, se seu doutor não a tivesse sacralizado e divinizado; Los, veremos, é ao mesmo tempo   Blake ele mesmo — o artista Blake, gravador e poeta, mas divino   ferreiro da junção dos dois   domínios — o demiurgo universal, após um formidável golpe de mão (aliás continuado e posto em questão, para nosso espanto, até o último capítulo de Vala ou de Jerusalém) sobre o cristianismo: exatamente sobre o mistério da Trindade  , pois a Imaginação é arrebatada e torna-se a Segunda Pessoa, a do Verbo. Ele o escreve textualmente, o repete, nunca teve nada   mais sério e decisivo contra os ingênuos ou tolos que marcharam e correram em socorro de sua simulação do cristianismo. Et ego  ...

Em sua descarga e na nossa, reconheçamos que a forja é poderosa, quase perfeita, e que a princípio há tentação de aceitar como uma figura honesta essa segunda Pessoa, humano-divina transformada em Verbo, e particularmente votada à Imitação do ser   divino. A radical e formidável heresia, a evacuação da Trindade e da Cruz, não serão, ou não constantemente, aparentes; revelar-se-ão, todavia, o verdadeiro objetivo da guerra intelectual proclamada "até o último suspiro": prová-lo-emos no primeiro capítulo do primeiro livro  , abaixo, da heresia, e da simulação do cristianismo.

É preciso, porém, antes de tudo, afastar a objeção prejudicial: por que essa heresia em sua forma mítica e excêntrica? Não seria acidental, exterior à obra, da qual poderia ser   separada, já que milhares de leitores podem recitar The tyger ou The little black boy para um (e ainda assim) que guardaria na memória   dez versos dos poemas proféticos?


BOUTANG, Pierre. William Blake, manichéen et visionnaire. Paris: La Différence, 1990