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Musil – Amor

sexta-feira 27 de junho de 2025

“Amor é um sentimento? À primeira vista, essa questão pode dar a impressão de ser absurda, de tal modo sentir parece ser a natureza do amor; tanto maior é a surpresa diante da resposta correta: pois, no amor, o papel do sentimento é deveras pequeno! Visto apenas como sentimento, o amor não tem a intensidade e o poder de uma dor de dentes, e é de qualquer forma menos característico.”

A segunda anotação, não menos estranha, dizia: “Um homem pode amar o cão e a esposa. Uma criança pode amar um cão com maior ternura que um homem sua mulher. Há quem ame sua profissão, outros amam a política. Mais que tudo, parece que amamos estados gerais; refiro-me — se não os odiamos francamente — àquela sua interação inextricável, que gosto de denominar ‘sentimento de cocheira’: sentimo-nos contentes e em casa em nossa vida, como um cavalo em sua cocheira!

Mas que significa ligar coisas tão diferentes com a mesma palavra ‘amar’?! Junto à dúvida e à ironia, um pensamento muito antigo se alojou em minha cabeça: tudo no mundo é amor! Amor é a essência do mundo, meiga, divina, coberta de cinzas, mas indelével! Eu não saberia dizer o que entendo por ‘essência’; mas se me entrego descuidado a todo esse pensamento, ele me causa uma sensação de estranha certeza natural. Pelo menos por alguns instantes.”

Ágata corou, pois as observações seguintes começavam com o nome dela. “Ágata mostrou-me certa vez passagens da Bíblia; ainda me lembro de seu teor e resolvi anotá-lo:

‘Tudo o que se passa no amor se passa em Deus. Pois Deus é amor.’ E uma segunda dizia:

‘O amor é de Deus, e quem ama a Deus foi gerado por ele.’ Há uma patente contradição entre as duas passagens: de uma feita, o amor vem de Deus; da outra, ele é o próprio Deus!

As tentativas de expressar a relação do ‘amor’ com o mundo parecem, portanto, causar não poucas dificuldades até mesmo aos iluminados; como seria possível que a inteligência desinformada não viesse a fracassar! Que eu o tenha chamado de essência do mundo foi uma mera escapatória; permite que diga de pleno direito que a pena e o tinteiro que uso para escrever se compõem na verdade de amor, ou que se comporiam dele na realidade. Mas como na realidade? Consistiriam então em amor ou seriam sua conseqüência, aparência configurante ou insinuação? Serão eles mesmos, já em si, amor, ou falamos da realidade de uma supernatureza? E de que se trata com o: na verdade? É uma verdade para a inteligência aguçada, ou uma para a ininteligência abençoada? É a verdade do pensamento, ou uma relação simbólica incompleta, que só desvendará completamente seu significado na universalidade das ocorrências do espírito sintetizada em Deus? Disso, que foi que eu disse?

Mais ou menos nada e tudo!”

“Teria da mesma forma podido dizer que o amor é a razão divina, o logos neo-platônico. E, da mesma maneira, outra coisa: que o amor é o colo do mundo; o meigo colo do acontecimento que não compreende a si mesmo. E mais uma variação: ó mar do amor, que apenas quem se afoga conhece, e não quem passa por cima! Todas essas exclamações indicativas obtêm sentido apenas porque nenhuma delas cumpre a palavra.

O sentimento mais sincero: como é ínfima a Terra no espaço celeste, e como o ser humano, mais nulo que a menor criança, precisa de amor! Mas isso nada mais é que o puro grito por ele, sem sombra de resposta!”

“Talvez eu possa, porém, falar da seguinte maneira, sem cair no vazio do exagero: há um estado no mundo que estamos impedidos de ver, mas que as coisas por vezes deixam entrever aqui e ali, quando nós mesmos nos encontramos num estado de exaltação especial.

E só nele percebemos que as coisas são ‘feitas de amor’. E só nele entendemos também o que isso significa. E só ele é então real, e nós seríamos então verdadeiros.

Nessa descrição, eu não precisaria desdizer nada. Todavia, nada tenho para acrescentar a ela!”

Ágata estava surpresa. Nessas anotações secretas, Ulrich se mostrava bem menos reservado que de hábito. E embora entendesse que ele só se permitia isso sob reserva de segredo, ela pensava vê-lo diante de si de braços abertos para alguma coisa, indeciso e comovido.

As anotações continuavam: “Há outra idéia que quase poderia ocorrer à própria Razão, caso esta abandonasse um pouco sua posição de equilíbrio: imaginar o Oniamante como Eterno Artista. Ele ama a Criação enquanto a produz, mas das partes prontas seu amor se desvia. Pois o artista tem de amar também o odioso para poder criá-lo, mas o que já produziu o deixa frio, mesmo que seja bom; fica tão abandonado de amor, que o próprio artista nele não mais se reconhece, e são raros e imprevisíveis os momentos em que seu amor retorna e se deleita com o que fez. Dever-se-ia, pois, pensar também: aquilo que reina sobre nós ama o que produz; mas, da parte pronta da Criação, seu amor se afasta e aproxima em longas vazões e curtos re-fluxos. Essa imagem corresponde ao fato de as almas e coisas do mundo serem como mortos que só às vezes ressuscitam por alguns segundos.”

Vinham então algumas outras observações fugidias, parecendo meras tentativas.

“Um leão frente ao céu da manhã! Um rinoceronte ao luar! Tens a escolha entre fogo de amor e fogo de espingarda. Devemos, portanto, supor pelo menos dois estados fundamentais: amor e violência. E sem dúvida é a violência que mantém o mundo em movimento e o impede de adormecer, não o amor!

Aqui, poder-se-ia, contudo, introduzir a suposição de que o mundo caiu em pecado.

Antes, amor e paraíso. Isso significaria: o mundo pronto, pecado! O mundo possível: amor!

Outras questões suspeitas: os filósofos imaginam Deus como filósofo, como o espírito puro; não seria natural, então, que os oficiais o imaginassem como oficial? Mas eu, matemático, imagino o Onipresente como amor?! Como foi que cheguei a isso?

E como poderíamos compartilhar uma das mais íntimas vivências do Eterno Artista?”


MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. Tr. Lya Luft e Carlos Abbenseth. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.