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Ensaios de Mitologia Cristã

Manuel João Ramos – Para além do binarismo opositivo

Prólogo

O enigma do Preste João e a crítica à razão dualista antropológica
  • A interrogação histórica sobre a identidade do soberano etíope e sua associação com o lendário Preste João, rei de riquezas e virtudes inigualáveis, constitui o ponto de partida para uma investigação situada na intersecção entre a análise antropológica e a literatura de viagens, visando explorar as fronteiras internas da lógica dualista e as virtualidades do discurso mítico-literário centrado no tema do Filho do rei.
  • O projeto transcende o inquérito etnográfico sobre os escritores jesuítas na Etiópia para questionar, através da análise de textos literários, as configurações teóricas que informam os modelos antropológicos sobre o pensamento simbólico, especificamente aqueles da tradição durkheimiana que produzem enigmas artificiais ao confrontar a estranheza de categorias culturais alheias com dispositivos racionais e conceitos hierárquicos ocidentais.
  • A tradição antropológica, confrontada com um pensamento em ato que privilegia a justaposição dual e a classificação por pares antitéticos, tende a produzir respostas áridas ao tentar explicar a instabilidade das categorias simbólicas e a ambiguidade lógica através de uma racionalidade científica e de uma escrita alfabética que se presumem superiores e distintas da sociedade investigada.
A dicotomia entre Oralidade e Escrita e a domesticação do pensamento
  • O modelo durkheimiano é moldado por um discurso essencialmente dicotômico e etnocêntrico, conforme observa Jack Goody, o qual subsume diferenças entre Nós e Eles ou Ciência e Mito em uma oposição entre o pensamento introspectivo racionalizador e um pensamento simbólico binário; paradoxalmente, este discurso taxonômico utiliza as próprias limitações da lógica dualista que o antropólogo atribui exclusivamente às sociedades observadas.
  • Jack Goody, ao tentar superar a retórica dicotomizadora em seus ensaios sobre a lógica da escrita, acaba por substituir antigas oposições por uma nova dicotomia entre Escrita e Oralidade, supondo uma separação entre História e Mito ou Análise e Simbolismo, e vendo a escrita não apenas como reflexo, mas como motor de mudança qualitativa nas potencialidades cognitivas e classificatórias da psique humana.
  • A argumentação de Goody sugere que a escrita, ao permitir tabelas e fórmulas, liberta o indivíduo da confusão classificatória e promove o desenvolvimento de processos lógicos hierarquizadores, expurgando a lógica ambígua e a retórica da união de opostos própria da oralidade, estabelecendo assim a escrita alfabética como uma tecnologia do intelecto essencialmente desambiguizadora.
  • Contudo, a antropologia baseia-se em uma crença de princípio na ficção escrita do pesquisador contra uma descrença no discurso oral do indígena, sendo o projeto classificatório nas ciências sociais, tal como imaginado por Durkheim, um obstáculo à investigação de objetos que não se submetem à classificação sociológica rígida, conforme aponta Gomes da Silva.
  • Wolfgang Iser lembra que a ficção escrita nasceu simultaneamente à própria escrita, o que sugere que a argumentação antropológica deve ser cautelosa ao projetar modelos taxonômicos opositivos sobre manifestações do pensamento humano, sob pena de enfrentar dificuldades heurísticas evidentes diante de objetos que afirmam estranheza a critérios classificatórios rígidos.
Limitações dos modelos classificatórios e a lógica aristotélica
  • Rodney Needham, ao reconhecer que oposições binárias concretas sugerem sempre outras séries de oposições, acaba preso à circularidade de um projeto classificatório que se assemelha a um colecionador de borboletas, incapaz, segundo Edmund Leach, de pensar topologicamente e proceder a generalizações imaginativas, limitando-se a ordenar pares analogicamente.
  • A tipologia de relações lógicas proposta por Needham ignora deliberadamente dois tipos de oposição mencionados por Aristóteles no Organon e na Metafísica: os termos de geração e destruição e os atributos mutuamente incompatíveis de uma matéria receptiva a ambos, sendo estas relações fundamentais para a atividade simbolizadora, como compreendeu Radcliffe-Brown ao tratar da associação por contrariedade.
  • Claude Lévi-Strauss, receoso das consequências da fórmula de Radcliffe-Brown, reverte o problema para o jargão fonológico, mantendo o esquema durkheimiano que guia sua análise das classificações simbólicas e dependendo, em última análise, de um quadro dicotomizador que negligencia o fato de a atividade simbolizadora ser primariamente cognitiva antes de ser um sistema codificado de comunicação.
  • Dan Sperber nota que a atividade simbolizadora é cognitiva, e Marcel Detienne critica o complexo etnocêntrico na tese de Lévi-Strauss, onde o mito é visto como uma tradição oral oposta ao logos ou discurso verdadeiro escrito, sugerindo em contrapartida uma mitologia que mobilize crenças e saberes para além do gênero narrativo.
  • Gomes da Silva ressalta que o mito oferece uma conceitualização do mundo onde elementos discretos se associam por relações que manifestam uma filosofia do devir e da reversibilidade, o que desarticula a validade heurística de classificações sociológicas dicotômicas estáticas, embora mantenha a operatividade de certos procedimentos analíticos lévi-straussianos.
A escrita como poder e a ilusão da verdade
  • Platão, no Fedro, através do diálogo entre Sócrates e Fedro, argumenta que a escrita diminui as capacidades memoriais e cognitivas, produzindo esquecimento na alma e oferecendo apenas a presunção de ciência, e não a ciência em si mesma, questionando assim a autolegitimação da validade do discurso escrito.
  • Para Lévi-Strauss, a escrita altera as relações entre indivíduos, facilitando a hierarquização social e a subordinação, conferindo um acréscimo de poder, enquanto Goody radicaliza o projeto dicotomizador ao postular que a escrita objetiva o pensamento e elimina a ambiguidade característica do muthos.
  • Jack Goody atribui a Lévi-Strauss um quadro de opostos (Quente/Frio, Moderno/Neolítico, Ciência/Bricolagem) que não é validado pela argumentação original de O Pensamento Selvagem, visto que para Lévi-Strauss a diferença entre simbolismo e ciência é de grau e não de natureza, e o pensamento selvagem refere-se ao pensamento em estado selvagem e não ao pensamento dos selvagens.
  • A elaboração de quadros de opostos por Goody, apesar de sua crítica anterior a Needham sobre o caráter redutor de tais simplificações, confirma a natureza durkheimiana de seu estudo sobre a correspondência entre organização social e formas lógicas, revelando que a função da escrita em sua obra não se resume apenas a anular contradições lógicas, mas serve a um projeto ideológico.
Hierarquia, Sagrado e a Teologia como modelo sociológico
  • A análise de Robert Hertz sobre a preeminência da mão direita procura explicar sistemas de crenças complexos a partir de uma assimetria morfológica mínima, sugerindo que o pensamento religioso impõe uma homologia entre Direita-sagrado-ordem e Esquerda-profano-caos, estabelecendo uma hierarquização onde o profano é visto como uma ausência de poderes sagrados ou posse de poderes sinistros.
  • A ideia de hierarquização no pensamento durkheimiano remete à árvore de Porfírio, onde o pensamento parte do particular para o geral através de englobamento lógico sucessivo; Durkheim considera o entendimento lógico uma função da sociedade, postulando que a religião molda a ordem social através da oposição fundamental entre Sagrado e Profano.
  • Esta formulação durkheimiana pressupõe, sem comprovação, que a oposição Sagrado/Profano é universal e operatória, que o pensamento científico se opõe radicalmente ao religioso, e que existe uma continuidade entre lógica formal e relações sociais, ignorando a crítica de Luc de Heusch sobre a validade explicativa destas categorias fora do contexto latino.
  • O estudo comparado das religiões na perspectiva durkheimiana é, em grande medida, uma variação sobre os princípios da teologia cristã, onde a relação entre sagrado e profano é classificada como oposição privativa; Tomás de Aquino, seguindo a tradição agostiniana, define o Mal apenas como ausência de Bem (bonum oppositum) para evitar a conclusão lógica de que Deus criador conteria o Diabo criado se a relação fosse de contrariedade pura.
  • Louis Dumont, ao inverter coordenadas do esquema durkheimiano, mantém suas premissas ideológicas ao propor que a hierarquia envolve o englobamento do contrário, onde o termo superior engloba o inferior; contudo, Dumont e Needham tratam contrários como se fossem contraditórios, uma tendência determinada por uma lógica classificatória estaticista incompatível com a osmose e projeções recíprocas dos termos simbólicos, conforme observado por Barnes e Gomes da Silva.
A dinâmica dos símbolos e a inadequação dos quadros estáticos
  • A confusão recorrente entre o plano lógico e o plano das crenças institucionais resulta na criação de taxonomias simbólicas fixas que falham ao confrontar contextos dinâmicos; o quadro de opostos de Needham, por exemplo, é um dispositivo limitativo que espartilha articulações metonímicas e metafóricas, ignorando a ambiguidade semântica valorizada por Edmund Leach.
  • As relações lógicas aristotélicas ignoradas por Needham — geração/degeneração e a receptividade da matéria a atributos incompatíveis — são centrais no simbolismo, pois definem os termos pelo que os une e não apenas pelo que os opõe; nos Evangelhos sinóticos, Jesus é apresentado como receptivo tanto ao Espírito divino quanto ao diabólico, configurando uma contradição e não apenas uma conexão problemática com a contrariedade.
  • A estratégia narrativa do Novo Testamento funda-se na consubstancialidade entre Deus-pai criador e Deus-filho criado, demonstrando que ontologia e pensamento simbólico não são mutuamente exclusivos e que a identidade é definida transformacionalmente, algo que quadros classificatórios estáticos não conseguem captar.
  • Lewis Carroll, em Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho, ilustra a ontologia simbólica ao mostrar que a identidade depende de processos de transformação (como a lagarta e a borboleta) e que a crença em coisas impossíveis é um exercício cognitivo que desafia a lógica normativa e a experiência empírica imediata.
Proposta metodológica e a Carta do Preste João
  • Os ensaios propostos constituem uma dissertação sobre formas simbólicas associadas ao modelo cristológico da realeza sacerdotal europeia, tomando como base a Carta do Preste João, um complexo de textos forjados que utiliza o imaginário exótico para pensar o conceito de Rex imago Christi e a Christomimesis do poder fora das conjunturas históricas imediatas.
  • A Carta, sendo um documento fictício, permite explorar a hipótese do modelo de rex sacerdos através de uma retórica que possibilita acreditar em coisas impossíveis sem atribuir valor normativo, servindo para testar a operatividade das noções de contrariedade, consubstanciação e transformação na mitologia cristã.
  • A análise adota uma abordagem digressiva que reconhece correspondências temáticas e genéticas entre tradições literárias inter-relacionadas, assumindo a Bíblia como um Grande Código, na expressão de Northrop Frye, que fornece a roupagem simbólica para a ideologia da realeza inerente à figura do Preste João.
  • Embora a análise seja sincrônica ao tratar o corpus bíblico e apócrifo como mítico, reconhece-se que o conhecimento enciclopédico é cumulativo e que a escrita cristaliza sentidos; a leitura pragmática, seguindo Wolfgang Iser, entende o sentido do texto como um acontecimento dinâmico composto pelo leitor, e não como uma entidade definível por um código objetivo.
  • O discurso escrito das ciências sociais não depende exclusivamente de critérios analíticos lógico-dedutivos, mas assenta sobre uma estrutura argumentativa e retórica; pretender que a escrita acesse a Verdade absoluta é esquecer, como na ficção criticada de Goody, que ela produz discursos sobre o mundo mas não a ciência por si mesma.

Ver online : Manuel João Ramos


RAMOS, M. J. Ensaios de mitologia cristã: o Preste João e a reversibilidade simbólica. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.