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Ensaios de Mitologia Cristã

Manuel João Ramos – Problemas heurísticos: ler para crer

Preste João: soberania sacerdotal e milenarismo cristão

Problemas Heurísticos e Metodológicos na Interpretação da Carta do Preste João
  • A tentativa de aferir o impacto da Carta do Preste João sobre os leitores medievais europeus, visando estabelecer um quadro sistematizado de crenças sobre o mundo oriental anteriores às viagens de descobrimento, revela-se inválida e constitui um obstáculo hermenêutico, uma vez que a compreensão das articulações da mensagem textual é incompatível com a proeminência excessiva atribuída pelos investigadores à questão da credibilidade e veracidade documental do texto.
  • Mais de um século de estudos, desde os trabalhos pioneiros de G. Oppert e F. Zarncke no século XIX, passando por investigações anteriores de J. S. Assemani, Visdelou e do Marquês M. D’Avezac, testemunham a dificuldade dos pesquisadores em não se deixarem ofuscar pela estratégia retórica do texto, o que resulta em uma constatação inicial de descrença fundada na literatura jesuítica seiscentista sobre a Etiópia e impõe uma distinção radical e artificial entre um autor real investigável e um narrador fictício inimputável.
  • Desenvolveu-se progressivamente um modelo argumentativo circular para relacionar os exemplares sobreviventes da Carta com outros textos históricos e apócrifos, como a Crónica de Otao de Freising referente a Hugo de Jabala, a Carta de Odo de Rheims, os Atos de Tome, o relato de Eldad ha-Dani e a História de Alexandre, tratando a Carta como um documento ficcional derivado de uma versão original perdida ou de ecos de missivas de um soberano oriental supostamente autêntico.
  • Poder-se-ia evocar a necessidade de distanciamento crítico em relação ao que Levi-Strauss designou como traçados fraudulentos sobre uma matriz descontínua, sem os quais não haveria conhecimento histórico, mas a resistência heurística em aceitar a possibilidade de crer no conteúdo da Carta contradiz os próprios objetivos da investigação tradicional, que busca reconstruir uma verdade histórica exata sobre as relações internacionais e a cosmografia medieval através de um preceito epistemológico falacioso que inverte a máxima de Wittgenstein — creio no que sei — para um não creio no que não sei.
Antropologia da Crença: Paralelos Comparativos
  • A análise da legitimidade dos preceitos de crença e descrença beneficia-se do confronto com concepções antropológicas, como ilustrado pelo episódio narrado por Dan Sperber sobre o velho etíope Filate, que solicitou ao antropólogo a morte de um dragão com características fantásticas; a hesitação de Sperber revela que, durante o processo de escrita, omitiu-se a premissa de que a atitude de descrença habitual na existência real de dragões vacilou diante da possibilidade de existência imaginária de dragões no simbolismo cultural local.
  • A imputação de uma crença na existência real de dragões ao velho Filate constitui uma interpretação que esquece que uma crença representacional não é analítica, ou seja, não é determinável como verdadeira ou falsa, sendo impossível demonstrar a inexistência de um ser que é mentalmente representável mas não experimentalmente observável; não pode haver declaração de descrença sem uma suposição inicial de crença, e a distinção entre crenças factuais e representacionais acaba por silenciar a natureza representacional dos próprios fatos.
  • Edmund Leach, ao analisar as crenças dos habitantes das ilhas Trobriand sobre a fecundação por espíritos vegetais e a negação da paternidade fisiológica, critica a postura de Malinowski que, ao recusar fazer uma constatação equivalente para o dogma cristão da mãe virgem, baseia-se em uma distinção indemonstrável e etnocêntrica entre a suposta ignorância selvagem e o saber teológico civilizado, sugerindo que as teorias antropológicas revelam mais sobre os antropólogos do que sobre os indivíduos observados.
  • A complexidade da relação do cristão com suas crenças, resolvida teologicamente pela distinção entre natureza divina e humana ou sociologicamente entre pater e genitor, contrasta com a suposta simplicidade confusa atribuída aos trobriandeses; Malinowski, ao tentar persuadir o leitor sobre o caráter radical da matrilinearidade, torna-se o único indivíduo que efetivamente acreditou ou fingiu acreditar no caráter factual da crença indígena, transformando a teoria em uma mistificação.
A Verdade e o Mito na Historiografia Grega
  • Paul Veyne, ao estudar as modalidades de verdade e crença no pensamento grego antigo, observa que Pausanias extrai da lenda de Teseu um núcleo autêntico ao decantar os elementos maravilhosos, operando uma crítica que reduz o mito ao verossímil e inverte a interpretação política de Aristoteles, mas mantendo a historicidade de Teseu fora de questão enquanto expurga os elementos fantásticos como homens com cabeça de touro que não possuem existência real em seu mundo.
  • A postura de Pausanias, próxima da de Herodoto e Diodoro, assemelha-se mais à de um etnógrafo que relata o que lhe contaram sem necessariamente acreditar em tudo, tratando o mito como informação e não como pensamento científico; essa informação situa-se fora da alternativa de verdadeiro ou falso, constituindo o mito um tertium quid onde a mentira desinteressada não é fraude e a crença ocorre por confiança na competência do locutor, conforme análise de Oswald Ducrot.
  • Marcel Detienne esclarece a evolução semântica dos conceitos de muthos e logos, que de sinônimos de palavra de verdade na epopeia de Hesiodo passam a se distanciar radicalmente; em Herodoto e Pindaro, o muthos passa a ser visto como relato inacreditável ou sedução fraudulenta, levando Aristoteles a classificar Herodoto como mitólogo por relatar ficções absurdas.
  • A ruptura definitiva ocorre com Tucidides, para quem não há compromisso possível com a ordem do mito, contrapondo o logos como razão escrita e memória imutável ao muthos como ficção oral e deformável; a verdade do discurso histórico eficaz passa a ser, portanto, uma verdade estritamente escrita que exige um leitor capaz de escapar às surpresas do tempo.
Reavaliação da Carta do Preste João
  • A rejeição do conteúdo da Carta deve ser entendida como subproduto da perspectiva que postula que fontes representacionais mascaram matérias factuais; embora trabalhos mais recentes de Albert, Delumeau, Gosman, Knefelkamp, Caire-Jabinet e Medeiros tenham adotado uma posição mais neutra focada no caráter literário, enciclopédico e na recepção da obra, a pressuposição de crença dos leitores medievais permanece uma retórica indemonstrável que modela as questões suscitadas pelo texto.
  • A articulação interna da Carta é frequentemente vista como inseparável de um suposto sistema fechado de crenças medievais, mas se o próprio autor da Carta não crê necessariamente no que escreve, não há justificativa heurística para supor que os leitores coevos acreditavam cegamente; tal argumento informa menos sobre os leitores medievais do que sobre a necessidade dos investigadores modernos de projetar uma credulidade acrítica no passado.
  • A Carta, seja vista como mistificação consciente ou ornamentação fantasista, possui um duplo caráter de ficção literária e documento enciclopédico cuja recepção só pode ser inferida tenuamente; a busca pelo verdadeiro Preste João nasceu de uma ficção epistolar sob o signo do enigma e nunca se libertou da retórica da descrença, que é legitimada pela suposição inverificável de que o texto já foi outrora credível para leitores antigos.
  • Qualquer modelização sobre um hipotético sistema medieval de crenças cosmográficas baseada na suposição de que os leitores eram incapazes de descrer é indutiva e questionável; é imprescindível assumir, para uma consideração dinâmica das versões da Carta, que a questão da crença e da descrença é uma variável globalmente não necessária e que o conceito de sistema de crenças contém pressupostos inverificáveis.
  • Conclui-se, seguindo Michel Meyer, que se um texto é escrito para dar uma resposta, cabe ao leitor fazer as perguntas adequadas, evitando dar respostas a perguntas que o texto não suscita; conforme Wolfgang Iser, a ficção escrita propõe que se escreva o que se lê, esperando que o leitor, qualquer que ele seja, atribua sentido ao texto, prescindindo de pressuposições de imutabilidade ou partilha coletiva de crenças.

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RAMOS, M. J. Ensaios de mitologia cristã: o Preste João e a reversibilidade simbólica. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.