Página inicial > Mitos e Lendas > Manuel João Ramos – Texto e contexto da Carta do Preste João
Ensaios de Mitologia Cristã
Manuel João Ramos – Texto e contexto da Carta do Preste João
Preste João: soberania sacerdotal e milenarismo cristão
Estrutura Morfológica e Conteúdo Narrativo da Carta do Preste João
- A apresentação resumida da Carta do Preste João demonstra o caráter polissêmico do reino indiano descrito, onde os problemas de datação, origem contextual e autoria, embora dificilmente verificáveis, são elementos fundamentais para as estratégias interpretativas, visto ser árduo autonomizar o conteúdo textual das investigações sobre a realidade histórica do Preste João.
- As diversas versões latinas, tanto as consideradas por F. Zarncke como próximas de uma versão original desaparecida quanto aquelas contendo diferentes interpolações, seguem um modelo geral de exposição que se inicia com a apresentação do autor, Preste João, rei dos reis e imperador cristão das Índias, convidando o destinatário a visitar seu reino rico e poderoso, onde setenta e dois reis lhe são tributários e onde ele se dispõe a combater os inimigos da Cruz e visitar o Santo Sepulcro.
- O domínio descrito estende-se sobre as três Índias e territórios entre o extremo Oriente e a torre de Babel, caracterizando-se pela presença de uma fauna exótica composta por elefantes, dromedários, leões, a fênix, grifos, além de populações como homens peludos, pigmeus e ciclopes, sendo a proximidade do Paraíso terrestre evidenciada pela ausência de venenos e seres diabólicos, pela presença de um rio que arrasta pedras preciosas e de uma erva mágica capaz de afastar o Diabo.
- A geografia fantástica do reino inclui a fonte da juventude no topo do monte Olimpo, bosques de pimenta guardados por serpentes, pedras com propriedades de invisibilidade e visão ampliada, o mar de areia e um rio de pedras intransponível, além das dez tribos perdidas de Israel enclausuradas e salamandras que produzem seda incombustível para as vestes do Preste, num ambiente social desprovido de vícios, pobreza, diferenças sociais ou mentiras.
- A narrativa detalha o cerimonial e a arquitetura do poder, descrevendo exércitos precedidos por cruzes de ouro e pedras preciosas, a peregrinação anual ao túmulo do profeta Daniel, a presença de amazonas e brâmanes, e a suntuosidade de um palácio revestido de ouro onde o soberano é servido rotativamente por reis súditos, culminando na explicação de que adota o título humilde de presbítero porque seus súbditos já possuem as mais altas dignidades eclesiásticas e reais.
O Sistema das Interpolações e suas Variantes Semânticas
- Existem exemplares que apresentam detalhes adicionais conhecidos como interpolações, as quais não são caprichos de copistas, mas desenvolvimentos morfologicamente associados a aspectos semânticos essenciais do texto base, sendo comum que um manuscrito inclua múltiplas interpolações que não obedecem necessariamente a uma sucessão cronológica estrita.
- A interpolação A desenvolve o tema do bosque da pimenta; a interpolação B oferece uma longa descrição do segundo palácio construído pelo pai do Preste, Quasideus, e reforça a ligação com as tradições de São Tomé; a interpolação C introduz aditamentos sobre populações antropofágicas, os povos apocalípticos de Gog e Magog e pedras com poderes curativos.
- A interpolação D acrescenta informações sobre animais maravilhosos, formigas que colecionam ouro, serpentes de duas cabeças, o uso da pimenta, a ilha das amazonas, os brâmanes e maravilhas mecânicas como o moinho do Preste e autômatos; já a interpolação E fornece dados sobre a ilha Manna, elefantes e dragões domesticados, o mecanismo do moinho e a culinária não comburente.
- A análise das relações entre as interpolações revela que a interpolação A pode ser independente, a C tende a acopular-se à B expandindo a descrição do palácio, enquanto as interpolações D e E, cujos manuscritos mais antigos datam do século XIII, não demonstram dependência estrita em relação às outras, embora a E expanda descrições presentes na D.
Historiografia da Datação e Filiação dos Manuscritos
- F. Zarncke sugeriu o ano de 1160 como data provável da elaboração do original e o fim do século XIII para a interpolação E, baseando-se na identidade dos possíveis destinatários como Manuel I Comeno ou Frederico Barbarruiva e numa carta do papa Alexandre III datada de 1177, embora Gosman note que não há provas de que Alexandre III conhecesse o conteúdo da Carta do Preste João, confirmando apenas a existência de uma tradição sobre um rei indiano cristão.
- As tentativas de datar as interpolações através de relações intertextuais são complexas, como a ligação entre a interpolação B e a relação do clérigo Eliseu, ou a associação entre a interpolação C e o Chronicon Turonense que menciona Jacques de Vitry, ou ainda a relação entre a interpolação D e o texto Der Jungerer Titurel de Albrecht von Scharfenberg, o que sugere que esses textos se fundam em tradições literárias comuns mais do que em filiações diretas comprováveis.
- A genealogia dos manuscritos é marcada por incertezas, como evidenciado pelo manuscrito de Cambridge, anteriormente considerado molde para versões francesas e italianas por Zarncke, Letts e Slessarev, mas que Gosman propõe ser uma retradução latina de uma versão francesa, ilustrando o bizantinismo dos problemas de datação na ausência de uma reavaliação sistemática da análise comparativa.
- Reconhece-se que as versões em vernáculo baseiam-se em textos latinos perdidos, e a discussão entre autores como Ullendorf, Beckingham, Letts, Slessarev e Gosman destaca a impossibilidade de afirmar filiações absolutas entre manuscritos não interpolados e interpolados, notando-se que as versões francesas em prosa demonstram relativa liberdade em relação aos modelos latinos conhecidos.
Anacronismos das Fontes e a Cristalização do Oriente
- Um aspecto crucial reside no fato de que informações introduzidas em textos considerados posteriores à versão não interpolada remetem a fontes literárias anteriores à data de 1160 atribuída ao original, como as referências ao milagre de São Tomé presentes na versão francesa Fr:1, conhecidas no Ocidente desde o início do século XII através de textos anônimos e de Odo de Reims.
- Outras referências em versões posteriores, como passagens da História de Preliis do arcipreste Leo na versão Fr:2 ou a história do unicórnio e da virgem no fragmento escocês do século XV baseada em Philipe de Thaun, indicam que os textos usam preferencialmente textos literários europeus pré-existentes que se conformam a uma visão cristalizada do mundo oriental.
Contexto Político-Ideológico e a Hipótese Imperial
- Há uma concordância significativa entre diversos autores de que o centro de difusão da Carta seria o meio imperial alemão, no centro político do Sacro Império Romano, hipótese reforçada pela menção na interpolação E de que o tradutor latino da Carta seria o arcebispo Cristiano de Moguncia.
- A atribuição a Cristiano de Moguncia, arquichanceler de Frederico Barbarruiva e figura chave na diplomacia imperial que chefiou uma embaixada a Constantinopla, sugere que a gênese da Carta está ligada a questões de alta política internacional e diplomacia, inserindo-se no contexto das disputas entre os impérios alemão e bizantino e as tensões com a cúria romana.
- As críticas presentes no texto aos graeculi e à adoração do imperador bizantino, bem como a questão da confluência dos poderes espiritual e temporal na figura do Preste João, remetem para as disputas ideológicas pela proeminência dos dois gládios, interpretáveis no quadro das alianças instáveis estudadas por Helleiner, Fuhrmann e outros.
- A presença de neologismos de raiz grega como protopapaten e a indicação de um clérigo ocidental conhecedor de grego como suposto tradutor reforçam a conexão com os círculos eclesiásticos ligados a Otão de Freising e à corte imperial alemã, independentemente da veracidade histórica da autoria de Cristiano.
Considerações Epistemológicas sobre a Autoria e o Mito
- A obsessão da tradição de investigação, associada à passividade na aceitação da reconstrução textual de F. Zarncke, em buscar tanto o autor específico quanto o soberano histórico por trás do Preste João revela grandes dificuldades epistemológicas na abordagem do mito.
- O problema da autoria e da autenticidade torna-se irrelevante por não ser passível de demonstração definitiva, servindo muitas vezes para substituir formulações mais problemáticas sobre como é possível investigar e conhecer um objeto de estudo, como o mito do Preste João, em cuja existência factual não se acredita.
Ver online : Manuel João Ramos
RAMOS, M. J. Ensaios de mitologia cristã: o Preste João e a reversibilidade simbólica. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.