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Huxley – Vulgaridade

quarta-feira 2 de abril de 2025

Aldous Huxley Huxley Huxley, Aldous (1894-1963) . Música na noite & outros ensaios

Nós consideramos, até agora, dois casos: o caso no qual a palavra “vulgar” diz “Eu não gosto disso” e o caso no qual ela diz “Isso me traz à mente aquilo que são, para mim, as classes mais baixas”. No caso que começaremos a considerar agora, “vulgar” diz algo cuja definição é mais difícil. Por exemplo, eu posso afirmar que “este homem é vulgar. O fato de que ele vem de uma boa família e foi educado nos lugares certos não faz nenhuma diferença. A vulgaridade dele é intrínseca”. O que precisamente eu quero dizer aqui?

A etimologia é útil até mesmo nesse caso. O homem vulgar de boa família não é, de fato, um membro das classes mais baixas da nossa efetiva sociedade. Mas há uma sociedade ideal na qual, nós sentimos, ele e os seus iguais pertencem a uma casta muito esquálida.

Nenhum valor, exceto talvez os valores biológicos mais rudimentares, é aceito por todos os seres humanos. Só a tendência de avaliar é universal. Em outras palavras, o mecanismo para criar valores nos é dado, mas os valores em si mesmos precisam ser fabricados. O processo não chegou a ser racionalizado; a fabricação de valor é ainda uma indústria rural. Entre as classes educadas no Ocidente, no entanto, os valores são padronizados com proximidade suficiente para que sejamos capazes de falar sobre a sociedade ideal como se fosse algo absoluto.

Os extremos da vulgaridade são tão raros quanto os extremos da bondade, da perversidade ou do gênio; mas ocorre por vezes que topamos com um não cavalheiro da natureza que é obviamente um dos párias da nossa sociedade ideal. Tais pessoas são, de forma intrínseca, aquilo que os desafortunados indianos que varrem o chão e eliminam os resíduos são por acidente – intocáveis. Na Índia, quando você sai do seu hotel e quer dar uma gorjeta para o varredor, não deve estender a moeda, esperando que ele a pegue. A reação imediata dele ao seu gesto será recuar com medo; porque se você acabasse encostando os dedos na mão aberta do varredor você seria conspurcado. Com grande consideração, ele está poupando a você o trabalho de precisar tomar um banho, fumigar o corpo e trocar a roupa de baixo. A entrega das gorjetas aos varredores tem sua própria técnica especial: você tem de ficar parado a vários metros do beneficiário em potencial e jogar a sua doação no chão, aos pés dele. Transações comerciais durante a Peste Negra decerto foram realizadas num estilo bastante parecido.

O treinamento ensinou o indiano acidentalmente intocável a ter uma percepção de sua própria baixeza conspurcadora e a se portar em conformidade. Se apenas a natureza tivesse feito a mesma coisa com os marginalizados intrínsecos da nossa sociedade ideal! Contudo, ai de nós, ela não fez. Você se vê num jantar sentado ao lado de X, o eminente político; o jornalista, Y, se sente à vontade para convidar você a ir com ele até um bar favorito. Ao contrário dos varredores da Índia, esses marginalizados intrínsecos não desempenham seu papel de intocáveis. Tão longe estão eles de saber quais são os seus lugares que de fato pensam estar fazendo a você uma honra sentando-se à mesma mesa, uma honra lhe oferecendo, antes do almoço e em algum nojento salão de bar, um uísque duplo ou uma canequinha de viscoso porto. Quanto a recuar com medo, isso sequer lhes passa pela cabeça; eles inclusive se lançam mais à frente ainda. Na verdade, uma certa presunção (a qual torna impossível sentirmos muita simpatia pelo intocável intrínseco em sua aflição), uma certa vaidade impetuosa e pretensiosa é, como eu terei diversas ocasiões para mostrar no decorrer destas digressões, um dos elementos essenciais da vulgaridade. A vulgaridade é uma baixeza que se proclama – e a autoproclamação é também, de forma intrínseca, uma baixeza. Pois a pretensão em qualquer campo, a não ser que seja mais do que justificada por capacidade nativa e conquista demonstrável, é baixa em si mesma. Além do mais, ela sublinha todas as outras deficiências e, assim como uma substância química adequada revelará palavras escritas em tinta invisível, evoca as baixezas latentes num caráter, de modo que elas se manifestam sob a forma de vulgaridades abertas.

Há uma vulgaridade na esfera da moral, uma vulgaridade de emoções e intelecto, uma vulgaridade até mesmo do espírito. Um homem pode ser perverso, ou estúpido, ou passional, sem ser vulgar. Ele também pode ser bom com vulgaridade, inteligente com vulgaridade, emocional ou desprovido de emoção com vulgaridade, espiritual com vulgaridade. Além do mais, ele pode pertencer à classe mais alta numa esfera de atividade e todavia ser baixo em outra. Eu já conheci homens do maior refinamento intelectual cuja vida emocional era vulgar de uma maneira repugnante. Cada um de nós é como a população de uma cidade construída na encosta de uma colina: existimos simultaneamente em muitos níveis diferentes.

Estas breves anotações a respeito da vulgaridade pessoal pretendem servir como introdução para o que eu proponho dizer sobre a vulgaridade na literatura. As letras, a vida – os dois mundos são paralelos. O que é verdade aqui é verdade, com uma diferença, acolá. Em nome da completude eu deveria, é claro, ter ilustrado as minhas generalizações sobre a vulgaridade na vida com exemplos concretos. Mas isso teria significado uma incursão pelo reino da ficção, ou da biografia histórica – ou do libelo contemporâneo. Eu teria sido obrigado a criar um conjunto de personagens artisticamente vivos, com as circunstâncias de sua existência. O mundo e o tempo, como de costume, estavam escassos. Além disso, ocorre que eu já exemplifiquei de maneira elaborada, em diversos trabalhos de ficção, a vulgaridade emocional e intelectual como revelada na vida – talvez também, sem querer, como ela é revelada nas letras! Não vou começar de novo aqui. Aqui os exemplos prontos de vulgaridade fornecidos pela literatura servirão, de modo retrospectivo e por analogia, para ilustrar as minhas generalizações sobre a vulgaridade na vida.