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Huxley – Todo homem é uma unidade
quarta-feira 2 de abril de 2025
Aldous Huxley
Huxley
Huxley, Aldous (1894-1963)
. Sem Olhos em Gaza
[...] Eis aqui a observação que me fez o velho Miller, quando íamos, a cavalo, ver um dos seus doentes índios nas montanhas: “Na realidade e por natureza, todo homem é uma unidade; nós, porém, transformamos a unidade em trindade. Um homem inteligente e dois idiotas — eis o que, de si próprio, fez cada um de nós. Um admirável manipulador de ideias, atado a uma pessoa que, em matéria de consciência e sentimento, não passa de um cretino; e ambos, associados a um débil mental irremediavelmente inconsciente de tudo quanto faz e sente, sem capacidade alguma, sem saber servir-se de si próprio nem de qualquer outra coisa. Dois imbecis e um intelectual. Mas o homem é uma democracia, em que a maioria é quem governa. Temos, pois, que procurar corrigir essa maioria”. Essa atitude é um primeiro passo. Conhecimento de si próprio — preâmbulo essencial à transformação de si próprio. (Ciência pura e, depois, ciência aplicada.) Meu pecadilho é a indiferença. Não posso amofinar-me por causa dos outros. Ou melhor, não quero. Pois evito, com todo o cuidado, todas as ocasiões de me amolar. Uma parte necessária do tratamento está em enfeixar todas as ocasiões incômodas possíveis, ir ao encontro delas ou criá-las. A indiferença é uma forma de preguiça. Pois a gente pode trabalhar muito, como sempre tenho feito e, contudo, viver atolado na preguiça; ser industrioso no próprio serviço, mas escandalosamente preguiçoso com relação a tudo que não é seu serviço. Porque certamente o serviço é um prazer. Ao passo que o não serviço — relações pessoais, no meu caso — é desagradável e árduo. Cada vez mais desagradável à medida que o hábito de evitar as relações pessoais se vai impregnando e tornando, com o correr do tempo, uma segunda natureza. A indiferença é uma forma de preguiça; e a preguiça é, por sua vez, um dos sintomas de falta de amor, de desapego. Aquilo que amamos, que nos interessa, não dá preguiça. Mais uma vez, a palavra é suspeita — ainda oleosa do manuseio de gerações de Stigginses. Deveria haver um meio de limpar, enxugar, desinfetar as palavras. Amor, pureza, bondade, espírito — trouxa de roupa suja à espera da lavadeira. Como, pois — não direi amar, visto que é um lenço enxovalhado, mas sentir pelas pessoas um interesse persistente e afetuoso? Como estabelecer entre nós e elas a aproximação antropológica, como diria o velho Miller? Difícil de responder.

