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Guimarães Rosa (Tutaméia) – a estória não quer ser história

sábado 28 de junho de 2025

A estória não quer ser história. A estória, em rigor, de­­ve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota.

A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ine­di­­tismo. Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a ser­ventia. Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência. Nem será sem razão que a palavra “graça” guar­de os sentidos de gracejo, de dom sobrenatural, e de atrativo. No ter­reno do humour, imenso em confins vários, pressentem-se mui hábeis pontos e caminhos. E que, na prática de arte, comicidade e humorismo atuem como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não-prosáico, é verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em Chaplin e em Cervantes Cervantes Cervantes, Miguel de . Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento.

Não que dê toda anedota evidência de fácil prestar-se àquela ordem de desempenhos; donde, e como naturalmente elas se arranjam em cate­gorias ou tipos certos, quem sabe conviria primeiro que a respeito se tentasse qualquer razoável classificação. E há que, numa separação mal debuxada, caberia desde logo série assaz sugestiva — demais que já de si o drolático responde ao mental e ao abstrato — a qual, a grosso, de cômodo e até que lhe venha nome apropriado, perdôe talvez chamar-se de: anedotas de abstração.

Serão essas — as com alguma coisa excepta — as de pronta valia no que aqui se quer tirar: seja, o leite que a vaca não prometeu. Talvez porque mais direto colindem com o não-senso, a ele afins; e o não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria. A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas. Está-se a achar que se ri. Veja-se Platão, que nos dá o “Mito da Caverna”.

Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua, empurrando sua carrocinha de pão, quando alguém lhe grita: — “Ma­nuel, corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando fogo!...” Larga o herói a carrocinha, corre, vôa, vai, toma a barca, atravessa a Baía quase... e exclama: — “Que diabo! eu não me chamo Manuel, não moro em Niterói, não sou casado e não te­nho casa...”

Agora, ponha-se em frio exame a estorieta, sangrada de todo burles­co, e tem-se uma fórmula à Kafka Kafka Kafka, Franz (1883-1924) , o esqueleto algébrico ou tema nuclear de um romance kafkaesco por ora não ainda escrito.