Página inicial > Obras e crítica literárias > Abellio (Ézéchiel) – romance
Abellio (Ézéchiel) – romance
segunda-feira 7 de julho de 2025
Sabes o que espero do romance. Nunca escrevi para os amadores de anedotas, nem para os patetas, machos ou fêmeas, que imaginam poder escapar da gaiola. Sempre escrevi para acionar a briga, para virar todas as cartas marcadas dessa gente. Mas eu sabia disso mais ou menos. Hoje eu sei. Nenhum homem que tenha um pouco de gosto pelo absoluto pode ainda se agarrar a alguma coisa. A democracia é uma devassidão sentimental, o fascismo uma devassidão passional, o comunismo uma devassidão intelectual. Nenhum campo pode mais vencer. Já não há vitória possível. Então, tanto melhor que a terra seja logo livrada desses insetos de cupinzeiro cuja estupidez é chocante. Estás de acordo?
— Estou de acordo, eu lhe disse.
— Não parto em busca de soluções, parto em busca de problemas. Em busca de situações novas. É por isso que sou romancista, e romancista da destruição. Só o romance pode hoje dizer a verdade total, acima dos partidos, e essa verdade é destrutiva. O canal do romance tornou-se o único que permite a distribuição dos venenos e anestésicos de que o mundo precisa para arrebentar num paroxismo de felicidade. Quando Jeová pensa nas inumeráveis multidões a quem vai incendiar as entranhas, ele promete isto ao Profeta: Eu os embriagarei para que se entreguem à alegria. Será o fogo diluviano, bem entendido, e não é uma blasfêmia dizer que esse fogo roedor, que fará do homem um demônio gozador e extasiado, será o supremo dom de Deus à massa dos povos. Em todo caso, é assim que o vejo. Gozar e sofrer, sempre juntos. E isso passa por nós. Somos nós que somos os distribuidores. Pois a verdade total é um anestésico para os fracos e um álcool para os fortes...
— Continuo de acordo, eu lhe disse.
Ele parou bruscamente e me encarou. Tínhamos chegado a poucos metros da entrada do metrô.
— Então, ele me disse, o que pensa desta ideia grandiosa: reunir todos os romancistas do mundo, quero dizer os verdadeiros, uma dezena ou uma vintena, numa mesma cumplicidade organizada? Os romancistas luciferinos. Chamo de luciferinos aqueles que levam a luz aos subterrâneos onde estamos, o que equivale a atear fogo... O melhor meio de assistir à destruição e sair ileso ainda é dirigi-la, ele disse.
Abellio
Abellio
Raymond Abellio (1907-1986)
ABELLIO, Raymond. La structure absolue. Paris: Gallimard, 1965
, Raymond. Les Yeux d’Ézéchiel sont ouverts. Paris : le Livre de poche, 1968