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Kafka, o mínimo de elementos do mundo em seus cenários
sábado 26 de abril de 2025
Calasso Calasso Calasso, Roberto , 2002
No início, há uma ponte de madeira coberta de neve. Nevoeiro cerrado. K. ergue o olhar “para o que parecia ser o vazio”, in die scheinbare Leere. Ao pé da letra: “para o vazio aparente”. K. sabe que há alguma coisa naquele vazio: o Castelo. Jamais o viu, talvez jamais ponha os pés ali.
Kafka Kafka Kafka, Franz (1883-1924) intuiu que só se nomeara um número mínimo de elementos do mundo à volta. Uma afiadíssima navalha de Ockham penetrava a matéria romanesca. Nomear o mínimo e em sua pura literalidade. Por quê? Porque o mundo tornava a ser uma floresta primeva, sobrecarregado de sons desconhecidos e aparições. Tudo tinha potência demais. Por isso era preciso limitar-se ao mais próximo, circunscrever a área do nominável. Então fluiria para ali toda a potência, de outro modo difusa. E naquilo que se nomeia — uma estalagem, um trâmite, um escritório, um quarto — se condensaria uma energia inaudita.
Kafka Kafka Kafka, Franz (1883-1924) fala de um mundo prévio a toda separação e denominação. Não é um mundo sagrado ou divino, nem um mundo abandonado pelo sagrado e pelo divino. É um mundo que ainda está por reconhecer o sagrado e o divino, distingui-los do resto. Ou que ainda não sabe reconhecê-los, distingui-los do resto. Uma estrutura única, feita apenas de potência. O bem em sua plenitude, mas também o mal em sua plenitude estão impregnados de potência. O objeto sobre o qual Kafka Kafka Kafka, Franz (1883-1924) escreve é a massa da potência, ainda não dissociada, separada em seus elementos. É o corpo informe de Vrtra, que contém as águas, antes que Indra o trespasse com o relâmpago.
O invisível tem uma tendência zombeteira a se apresentar como o visível, como se se distinguisse de todo o resto tão-somente por obra de circunstâncias particulares, como uma neblina que se dissipa. Assim somos induzidos a tratá-lo como o visível — e o castigo vem em seguida. Mas a ilusão permanece.

