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L’œil
André Chastel: Cidades ideais
Numéro 36 (Noël 1957)
A Gênese e a Fundamentação Geométrica da Marchetaria Italiana
- A marchetaria italiana desenvolveu, durante o século XV, uma tipologia específica de paisagem urbana e arquitetura pura que acompanhou e por vezes antecipou a pintura, tirando partido das inovações dos mestres com uma decisão que evidenciou os aspectos mais sedutores da sua poética abstrata, sendo que o grande estilo de Piero della Francesca criou condições excepcionalmente favoráveis ao reinado do decoro geométrico através dos ciclos imponentes de painéis executados por artífices como Fra Giovanni da Verona ou Pier Antonio dell’Abbate.
- A percepção das belas cristalizações arquitetônicas propagou-se até aos primeiros anos do século XVI, sobrevivendo nitidamente ao triunfo das formas veladas e suavizadas na pintura, fenômeno de tal amplitude que exige uma interrogação sobre as suas origens e alcance, notando-se que durante muito tempo o termo prospettiva designou indistintamente tanto os autores de tarsia quanto a ordenação matemática da extensão, fato fundamental que explica como a marchetaria estimulou, difundiu e prolongou a arte da geometria e da arquitetura pura, visto que os métodos da perspectiva se expressavam em articulações de elementos simples e resolviam o painel num quebra-cabeça de peças regulares.
A Influência de Brunelleschi e a Revolução da Perspectiva em Florença
- Segundo uma anedota célebre, Donatello ironizava Uccello por esquematizar cubos, espirais e mazzocchi considerados adequados apenas para a marchetaria, contudo, as famosas vistas urbanas de Brunelleschi não eram senão cartões precisos de intársia, e conforme relata Vasari, o arquiteto não apenas ensinou a construção perspectiva a Masaccio, mas também a demonstrou aos que faziam marchetarias, estimulando-os a tal ponto que se lhe devem os desenvolvimentos interessantes desta disciplina e de muitas obras excelentes das quais Florença tirou glória e proveito.
- Brunelleschi obtinha uma perspectiva perfeitamente exata, levantada em planta e perfil por meio de interseções, dedicando-se a pintar vistas perspectivas de Florença como a praça de São João e a praça da Senhoria, conjuntos de edifícios difíceis de abarcar numa única vista que exigiam uma orientação oblíqua e constituíram imagens-tipo da paisagem urbana concebida como uma ordenação axial, ritmada por um pavimento regular e enquadrada pela linha de fuga das cornijas, transformando a cidade num panorama rigoroso de blocos e praças nuas, um teatro abstrato onde a perspectiva e a fiel marchetaria florentina substituíram a concepção de Siena de elementos aglomerados por uma armadura de estrita geometria.
- As perspectivas urbanas tornaram-se um exercício predileto para os intarsiatori, como demonstra o inventário de Lourenço, o Magnífico, em 1492, ao assinalar no Palácio Medici um leito adornado com tarsias e perspectivas, havendo ainda a voga nos interiores de painéis com vedute de arquitetura que permite compreender a função das célebres pinturas de arquitetura conservadas em Baltimore, Berlim e Urbino, as quais, pela analogia de forma e estrutura , transpõem as vistas urbanas da marchetaria que estiveram na origem das ficções arquitetônicas que encantaram o século XV.
A Evolução Técnica e os Mestres Toscanos e do Norte
- O grande período da marchetaria florentina situa-se por volta de 1470, com Benedetto da Majano como mestre proeminente, embora o desenvolvimento da técnica remonte a décadas anteriores com artífices como Antonio Manetti, cuja obra na sacristia da catedral, influenciada por Brunelleschi, já demonstrava efeitos de perspectiva e profundidade, contrastando com os exemplos sienenses de Mattia di Nanni que ainda aglutinavam edifícios em massas compactas remanescentes das iluminuras medievais.
- Florença privilegiava a ordem alucinante nascida da justaposição de massas estritas e grandes vazios, o que levou os irmãos Majano a modernizar o decoro de Manetti com grandes figuras e cenas evangélicas enquadradas por fortes arquiteturas, contudo, Benedetto, após a humilhação de ver um cofre encomendado por Matias Corvino desintegrar-se devido à umidade na Hungria, renunciou à marchetaria pela escultura, segundo Vasari, embora a técnica já se tivesse estabelecido como um substituto luxuoso do afresco, como se observa no studiolo do Duque de Urbino, decorado pelos ateliês de Baccio Pontelli com recursos de trompe-l’œil e paisagens através de pórticos desenhados provavelmente por Francesco di Giorgio.
- As mais belas cidades geométricas surgiram no círculo de marqueteiros oriundos da influência de Piero della Francesca, cujos esquemas foram decisivos para os irmãos Lendinara e toda a escola setentrional, os quais, favorecidos pela nova técnica de tinturas fervidas que permitia tons de madeira mais variados e efeitos de iluminação menos contrastados, fixaram o esquema da arcada enquadrando vistas urbanas que assumiam a fisionomia de cidades reais como Pádua ou os burgos toscanos de torres retas representados por Cristóforo da Lendinara em Lucca.
O Apogeu com Fra Giovanni da Verona e o Declínio Maneirista
- Por volta de 1480, os dosséis de marchetaria tornaram-se o último refúgio da arte rigorosa da qual a pintura começava a se afastar, sendo com Fra Giovanni da Verona que o movimento construtivista teve seu pleno desenvolvimento, um monge que, após aprender com Fra Sebastiano da Rovigno e familiarizar-se com as possibilidades da paisagem urbana, compôs em Santa Maria in Organo ruas profundas e ritmos densos de pilastras com uma facilidade técnica que se dobrava às nuances de sua imaginação poética.
- Em Monte Oliveto, a liberdade de inspiração de Fra Giovanni acentuou-se, conjugando a observação atenta da natureza , como pássaros e animais, com a análise arquitetônica precisa de panoramas e edifícios clássicos, mas o equilíbrio onde a virtuosidade era contida pela força da tradição abstrata rompeu-se com a mudança de gosto que levou à sua substituição no Vaticano e ao surgimento de obras de extrema complexidade como as de Capodiferro baseadas em Lorenzo Lotto.
- Fra Damiano, elogiado por Sabba Castiglione por realizar com a madeira o que a pintura mal conseguiria, afastou-se da medida de Fra Giovanni ao introduzir cenas narrativas e figuras que invadiram o campo da arquitetura antes vazio e silencioso, uma tendência exacerbada por seu discípulo G. Francesco Zambelli, levando à fragmentação excessiva das peças e condenando a marchetaria a perder suas massas puras e a deslizar para o tour de force maneirista, encerrando um ciclo de mais de meio século onde a técnica servira de espelho surpreendente para a arquitetura e as grandes estruturas edilícias.
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