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Milloué (1905) – A concepção de um Ser Supremo
quarta-feira 14 de maio de 2025
Milloué1905
A concepção de um Ser Supremo, eterno ou pelo menos anterior ao mundo, criador do universo — Prajapati, Purusha ou Brahma.
A Origem da Ideia do Ser Supremo
O ponto de partida dessa concepção parece ser o hino 90 do décimo Mandala do Rigveda, onde os deuses sacrificam Purusha ("O Masculino do Sacrificio") para formar o universo com os fragmentos de seu corpo. Porém, nesse hino, os deuses coexistem com Purusha, em vez de serem suas criações ou emanações, como nos mitos posteriores encontrados nos Brahmanas mais antigos (Aitareya, Taittiriya e Shatapatha).
Esses textos apresentam diferenças significativas, às vezes até versões contraditórias dentro de uma mesma obra, tornando difícil definir a natureza exata desse Ser Supremo:
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É espírito ou matéria primordial?
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Inteligência ou força pura?
As Diferentes Narrativas da Criação
1. Taittiriya Brahmana
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Declara que Prajapati é idêntico ao universo.
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No princípio, não existia nada — nem céu, nem terra, nem ar.
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O Inexistente desejou manifestar-se e entrou em fermentação/combustão espontânea, produzindo:
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Fumaça → Fogo → Luz → Chama → Raios → Água → Céu → Terra.
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Ao se apoiar na terra, o Inexistente (agora Existente) gerou:
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Asuras (do abdômen)
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Seres vivos (dos órgãos genitais)
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Estações (das axilas)
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Deuses (da boca).
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Mas logo depois, o mesmo texto afirma:
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"O espírito nasceu do Inexistente. O espírito criou Prajapati. Prajapati criou a sucessão dos seres. Tudo o que existe repousa absolutamente no espírito."
2. Taittiriya Aranyaka
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No princípio, tudo era água, e Prajapati nasceu sobre uma folha de lótus.
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Desejando criar, ele realizou penitência ardente e, ao sacudir seu corpo:
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De sua carne surgiu o sábio Aruna-Ketu.
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De sua parte fluida, uma tartaruga, que se transformou em Purusha (o homem de mil cabeças, olhos e pés).
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Aruna-Ketu, sob ordens de Prajapati, pegou água em suas mãos e a derramou nos seis pontos cardinais, criando:
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As seis regiões + deuses (Surya, Agni, Vayu, Indra, Pushan).
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Devas, homens, Pitris, Gandharvas e Apsaras.
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Demônios (Asuras, Rakshasas, Pisachas) surgiram das gotas derramadas.
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Resumo:
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As águas primordiais, fertilizadas pela sabedoria, produziram Brahma Svayambhu (o autoexistente).
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Tudo é Brahma Svayambhu, e tudo vem das águas.
3. Shatapatha Brahmana
Apresenta uma visão mais moderna e metódica da criação.
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Prajapati = Universo, e a criação ocorre pelo sopro (prana):
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"Prajapati, no princípio, era este universo, sozinho."
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Ele desejou: "Criemos alimento e nos multipliquemos."
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Gerou animais de seu sopro, um homem de sua alma, um cavalo de seu olho, um touro de sua respiração, etc.
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Outra passagem:
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Prajapati criou:
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Deuses (de seus ares vitais superiores).
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Criaturas mortais (de seus ares vitais inferiores).
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A Morte (devoradora dos seres).
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O mito do Deus andrógino:
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O universo era inicialmente uma única alma (Purusha).
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Ele olhou em volta e só viu a si mesmo, dizendo: "Isto sou eu."
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Sentiu medo (pois estava só) e depois desejou uma companheira.
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Dividiu-se em homem e mulher (Manu e Shatarupa).
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Deles nasceram os humanos.
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Ela se transformou em vaca, ele em touro, e assim surgiram todos os seres, até as formigas.
Criação pela palavra:
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Prajapati criou:
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Terra (pronunciando "bhuh").
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Ar ("bhuvah").
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Céu ("svah").
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Essas sílabas também geraram:
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Brâmanes ("bhuh").
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Kshatriyas ("bhuvah").
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Vaishyas ("svah").
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Outra versão (Vajasaneyi Samhita):
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Prajapati criou tudo articulando números ímpares de 1 a 31.
Evolução para o Panteísmo
Essa concepção, inicialmente vaga, foi se tornando cada vez mais espiritualista sob influência de especulações filosóficas, culminando na ideia da Alma Universal (Brahma) — essência de todas as coisas, presente em tudo e na qual tudo deve se absorver.
Segundo o Manusmriti (Código de Manu):
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Brahma (o Ser autoexistente) quis criar seres vivos de seu próprio corpo.
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Criou as águas e nelas depositou um ovo de ouro, do qual surgiu Brahma (o demiurgo) após um ano.
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O ovo se dividiu em:
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Céu (parte superior).
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Terra (parte inferior).
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Brahma era andrógino e se dividiu em homem (Virāj) e mulher (Sarasvati/Vāc).
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Dessa união nasceram Deuses, sábios, humanos, demônios e todos os seres.
Conclusão:
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Toda a criação emana de Brahma (a Alma Universal).
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Essa visão panteísta se tornou a base do hinduísmo filosófico.
Comparação entre as Narrativas
Texto | Processo de Criação | Ser Supremo |
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Rigveda (Hino 90) | Sacrifício de Purusha pelos deuses | Purusha (coexistente) |
Taittiriya Brahmana | Combustão espontânea do Inexistente | Prajapati = Universo |
Shatapatha Brahmana | Divisão andrógina + criação pelo sopro/palavra | Prajapati/Brahma |
Manusmriti | Ovo cósmico + divisão de Brahma | Brahma (Alma Universal) |
Essa evolução mostra como o pensamento védico passou de mitos fragmentados para uma visão unificada e metafísica da origem do universo.
Seja chamado de Brahma, Paramâtman, Vichnou ou Çiva, o Deus supremo não poderia, sem perder a perfeição que define sua supremacia, realizar qualquer ato que implicasse ação, movimento ou talvez até volição. Como uma entidade meditativa, inerte, pura razão, ele age na criação, proteção e destruição apenas por meio de substitutos—sejam emanações ou encarnações de sua essência divina (como é o caso de Vichnou), ou manifestações de sua energia em forma feminina (as Çaktîs de Çiva).
De acordo com esse princípio, quando chega o momento da criação, Vichnou desperta de seu longo sono—durante o qual, deitado sobre as espirais da serpente Çécha, é embalado pelos fluxos do oceano caótico—e faz surgir de si mesmo Brahmâ, o demiurgo, que modelará os mundos e criará ou gerará os seres conforme o plano preestabelecido pela vontade divina. Mais tarde, quando grandes cataclismos ou ações nefastas dos demônios ameaçarem a obra da criação, ele intervirá por meio de encarnações parciais de sua essência, manifestando-se visivelmente no mundo sob diversas formas adequadas aos seus desígnios e às perturbações que necessitem ser contidas.

