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Jean Richer – Swift, obra destinada a mortificar e reformar os adultos
domingo 6 de julho de 2025
Muitas vezes surpreende-se ao constatar que Gulliver, que no espírito de seu autor era uma obra destinada a mortificar e reformar os adultos, hoje em dia é lido quase somente por crianças, e isso em edições expurgadas e incompletas que não deixam subsistir grande coisa das intenções de Swift . Não temos de pesquisar aqui todas as razões desse fato, permitir-nos-emos todavia notar primeiro que a desmedida, o excesso no ataque dos vícios e dos defeitos humanos davam à crítica swiftiana um aspecto cômico e impediam que fosse levada realmente a sério, depois que o recurso constante aos inesgotáveis recursos da linguagem criava uma simpatia irresistível entre Swift-Gulliver e os jovens leitores. Essa verve aparenta o escritor a seus mestres Rabelais e Cyrano, outros Cabalistas, junto aos quais aprendera que se a armação de um homem (e de um livro ) é óssea, esta deve interiormente conter medula generosa.
Num certo sentido , o gênio de um indivíduo e especialmente de um artista, é caracterizado pela maneira como integrou sua infância. Que segredo enterrado no mais profundo de si mesmo impediu Swift de aceitar o corpo humano e seu odor... e talvez a criação em geral? É preciso sem dúvida renunciar a sabê-lo.
O drama pessoal de Swift, tal como nos aparece, vem de sua hesitação entre o mundo e a vida clerical, entre o cinismo e a caridade , entre o yahoo e o houyhnhnm. Deão paradoxal, mesmo numa época que contava muitos incrédulos e devassos, recusou certas imposições do sacerdócio, ao mesmo tempo que parecia cumprir suas obrigações.
Tudo se passa como se o escritor tivesse passado a última parte de sua existência encerrado nos mitos nascidos de sua imaginação: mito dos Strudlbrugs, mito dos yahoos, imagens invasoras da senescência e da bestialidade humanas: Swift secretara seu próprio inferno que o absorveu ainda em vida.
Para nos limitarmos ao problema capital da Quarta viagem, o da reconciliação da besta e do ser mental e espiritual no homem, é permitido supor que Swift terá encontrado na curva de algum Grande Sonho a antiga figura do Centauro Quíron [1] que realizava nele a reconciliação desejada do homem e do yahoo, da alma e do corpo. O bom Centauro reina no céu sob o nome de Sagitário quando o sol cada ano atravessa esse signo, por volta de 22 de novembro a 22 de dezembro — Swift nascera em Dublin a 30 de novembro de 1667. Mas em vez de pedir ao iniciador dos heróis e dos super-homens que lhe ensinasse a tornar-se semelhante a um deles, Swift lhe tomou apenas o arco e a flecha da sátira.
Entretanto, na Viagem ao país dos Houyhnhnms, as pesquisas e as preocupações linguísticas, conservando, em parte, o caráter de uma atividade de jogo , atingem uma espécie de grandeza, pelo fato de que o trocadilho sagrado ali reveste um sentido filosófico.
Assim, por meios puramente literários e linguísticos, Swift, teórico, no Conto do Tonel, do auricularismo e do eolismo, terá, em Gulliver transcendido seu drama pessoal criando mitos sempre vivos que exprimem os problemas que se colocam ao homem quando confrontado com sua própria infância, quando desperta nele o desejo de conhecer, quando tenta reconciliar sua natureza superior e a besta que dorme nele. É por isso que as Viagens de Gulliver contam na realidade a busca do homem à descoberta de si mesmo e tentando reencontrar o paraíso perdido, mostrando-nos o Verde (Gulliver), habitante de Red-riff que se esforça por reintegrar a condição primordial de Adão, o vermelho. E esse contemporâneo de Swift talvez não soubesse tão bem o que dizia quando colocava Gulliver em paralelo com o Pilgrim’s progress de John Bunyan.
Pois os grandes livros da humanidade: a Odisseia, a Eneida , A Divina Comédia , Dom Quixote, Gulliver, Fausto , são os que descrevem itinerários espirituais [[O presente estudo tem o n° 607 em A Bibliography of Swift studies, 1945-1965, por James J. Stathis, Vanderbilt University Press, Nashville, Tennessee, 1967. Foi publicado primeiro em 1957, no n° 344 dos Cahiers du Sud. (Veja a nota bibliográfica, in fine.)].
RICHER, Jean. Aspects ésotériques de l’œuvre littéraire: Saint Paul, Jonathan Swift, Jacques Cazotte, Ludwig Tieck, Victor Hugo, Charles Baudelaire, Rudyard Kipling, O.V. de L. Milosz, Guillaume Apollinaire, André Breton. Paris: Dervy-livres, 1980.
Gulliver’s Travels (1726). Delphi Complete Works of Jonathan Swift
[1] Cujo nome, mais uma vez, evoca a mão.