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Jean Richer – Swift: cavalos, sociedade ideal
domingo 6 de julho de 2025
Em seu capítulo de adeus ao leitor, o capitão Lemuel Gulliver precisa que o vício mais odioso e mais insuportável do homem lhe parece ser o orgulho: "... quando contemplo um amontoado de deformidades e doenças tanto corporais quanto mentais, tomado de orgulho; isso ultrapassa imediatamente os limites de minha paciência, assim como me será sempre impossível compreender como esse animal e esse vício podem andar juntos". E o viajante cogita de se resignar a viver entre os yahoos que povoam a Inglaterra se eles quiserem renunciar ao orgulho. Ora, o que sabemos da vida e do caráter de Swift Swift Jonathan Swift (1667-1745) nos mostra nele um homem presa de um orgulho multiforme: é portanto tanto de introspecção quanto de observação que se nutriu seu pessimismo e ele não se exclui da condenação geral que pronuncia. Moralmente, põe-se a nu diante de nós.
Desde o Conto do Tonel, elaborara uma filosofia do vestuário e do desnudamento da qual se inspirará um Carlyle. Lê-se ali um jogo de palavras filosófico que encontrará seu eco na Quarta viagem de Gulliver: o homem, diz-nos Swift Swift Jonathan Swift (1667-1745) , pretenso microcosmo não é na realidade senão um microvestuário, pois se identifica com suas opiniões e suas faculdades:
"... o que é o próprio homem, senão um microvestuário, ou melhor, um traje completo com todos os seus acessórios? No que toca seu corpo, a coisa não oferece dúvida, mas que se examine seus dons espirituais e descobrir-se-á que todos contribuem em seu lugar para fornecer um vestuário perfeito. Para nos limitarmos a alguns exemplos, a religião não é um manto? A honestidade um par de sapatos gastos na lama? O amor-próprio um sobretudo? A vaidade, uma camisa? A consciência uma calça, que cobre a lubricidade assim como a imundície, mas se tira facilmente para o serviço de uma ou de outra [1]?"
Num plano diferente, o virtuoso houyhnhnm, contemplando Gulliver despido de suas roupas, concluirá, um pouco apressadamente, que ele não é mais que um yahoo, apenas menos bem armado para sobreviver na luta pela vida. Num caso como no outro, o despojamento das vestes tem o mesmo objetivo: reconduzir o homem à sua humildade essencial, (segundo Swift Swift Jonathan Swift (1667-1745) ), de besta não animal rationalis mas rationis capax [2], esterco fétido onde, por vezes, podem descobrir-se algumas partículas de metal precioso.
Muitas vezes surpreendeu-se com a escolha dos cavalos para representar a sociedade humana ideal. Isso acarreta numerosas inverossimilhanças pois, em particular, a estrutura corporal desses animais não lhes permite os movimentos que Swift Swift Jonathan Swift (1667-1745) lhes atribui. Às vezes chegou-se a falar a esse respeito de um verdadeiro fracasso artístico.
Na origem dessa escolha está a experiência direta que Swift Swift Jonathan Swift (1667-1745) tinha dos cavalos, companheiros de suas andanças na Irlanda, e a amizade que lhes dedicava. Desde a primeira carta do Jornal a Stella (2 de setembro de 1710), não se lê: "Caí do cavalo fazendo o caminho desde Parkgate; mas não me machuquei, esse cavalo entendia muito bem de quedas, ficou tranquilamente deitado até que eu me levantasse [3]."
Além disso, existe uma longa tradição de cavalos maravilhosos na lenda e na literatura desde Pégaso e Bucéfalo até o cavalo dos filhos Aymon e o Bayard do Orlando Furioso: "Esse belo animal tinha um entendimento mais que humano", diz o Ariosto [4].
Mas venhamos ao que cremos ter sido o motivo determinante da escolha: o cavalo é, por definição, o animal Cabalístico, é portanto de algum modo normal vê-lo associado a uma recolocação em questão da natureza do homem que apela para os recursos da cabala fonética.
F. Portal, em sua obra Os Símbolos dos Egípcios comparados aos dos Hebreus (1840) indica a origem dessa aproximação [Op. cit., p. 143.]:
"O cavalo é o símbolo da inteligência: o homem deve governar seu espírito, como o cavaleiro guia seu corcel. [...]
Isso resulta do hebraico, pois o nome do cavalo de sela: prsch significa além disso explicar, definir, dar a inteligência. Isso resulta igualmente da Bíblia [5]. O cavalo de corrida, o corcel vigoroso chama-se rksch, palavra que significa além disso adquirir, apropriar-se, porque o espírito do homem, percorrendo o campo da inteligência, adquire novos conhecimentos."
Se nos reportarmos à obra de Fulcanelli sobre as Moradas filosofais [6] encontraremos ali diversos esclarecimentos a propósito de Swift Swift Jonathan Swift (1667-1745) , Fulcanelli escrevia: "... Pégaso, em grego Pegasos tira seu nome da palavra Pege ’fonte’ porque fez, diz-se, jorrar com uma patada a fonte Hipocrene; mas a verdade é de outra ordem. É porque a cabala fornece a causa, dá o princípio, revela a fonte das ciências, que seu hieróglifo animal recebeu o nome especial e característico que porta. Conhecer a cabala, é falar a língua de Pégaso, a língua do cavalo, cujo valor efetivo e poder esotérico Swift Swift Jonathan Swift (1667-1745) indica expressamente numa de suas Viagens alegóricas."
Além disso, como lembrou V.-E. Michelet, comentando a significação simbólica do cavalo [O Segredo da cavalaria (1930).], esse animal, assinalado astrologicamente pelo planeta Netuno, representa o veículo da intuição supramental: ora Swift Swift Jonathan Swift (1667-1745) queria precisamente mostrar a superioridade do instinto sobre a razão (pelo menos quando se trata da busca da felicidade).
Se voltarmos ao sistema fonético germano-latino elaborado pelo escritor, constatamos que, enquanto hom (houyhnhnm) é posto em paralelo com humus (yahoo), o primeiro termo tem como sinônimo equus, considerado por sua vez como equivalente a æquus.
Pois é precisamente uma sociedade ideal de seres dóceis, iguais entre si e equitativos que pretendia mostrar-nos a quarta viagem onde equídeo e equidade tornam-se uma só e mesma noção!
Mas Swift Swift Jonathan Swift (1667-1745) , que não está a uma contradição, introduz castas e hierarquias em sua sociedade de iguais.


RICHER, Jean. Aspects ésotériques de l’œuvre littéraire: Saint Paul, Jonathan Swift, Jacques Cazotte, Ludwig Tieck, Victor Hugo, Charles Baudelaire, Rudyard Kipling, O.V. de L. Milosz, Guillaume Apollinaire, André Breton. Paris: Dervy-livres, 1980.
Gulliver’s Travels (1726). Delphi Complete Works of Jonathan Swift
[1] Poderia haver ali uma paródia grotesca de São Paulo. (Ep. aos Efésios VI - 14 a 17). Veja nosso capítulo I. Não se lê nos Pensamentos sobre a Religião, de Swift: "Fiquei muitas vezes chocado ao constatar que sacerdotes faziam alegorias de São Paulo e outras figuras da eloquência grega artigos de fé." Tomamos a tradução da passagem citada ao Sr. A. Barbeau Swift, col. Os Cem chefes-d’obra estrangeiros, 1927, p. 63. O texto inglês diz: "What is a man himself, but a micro-coat."
[2] Carta a Pope, 29 de setembro de 1725.
[3] Jornal a Stella, trad. Renée Villoteau, 1939. O texto diz "the horse understanding falls very well" que se poderia traduzir por "entendendo muito bem de quedas".
[4] Citado pelo Sr. de Vaux Phalipau: Os Cavalos maravilhosos na história, a lenda e os contos populares (1939).
[5] Eis a lista das passagens da Bíblia, fornecida por Portai, onde aparece essa aproximação: Jó: XXXIX, 21-22; Ezequiel: XXXIX, 20; Apocalipse XIX, 18-21; Salmo CXLVII, 10; Salmo XXXIII, 17; Salmo XXXII, 9. Poder-se-ia multiplicar essas referências bíblicas, assinalemos ainda: Prov.: XXI, 31; Isaías: XXX, 16 e XXI, 1 a 3; Pr. XX, 8-9; Zac.: X, 3 a 5. É verossímil que Swift conhecesse ao menos alguns desses textos.
[6] Paris, Jean Schemit, 1930, p. 310 a 312. Reimpressão aumentada de um prefácio de E. Canseliet, 2 vol. J .-J. Pauvert, 1965.