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Daumal (RDTT:58-69) – A Revolta

domingo 20 de abril de 2025

(RDTT)

O homem que sempre aceitou tudo é como se estivesse dormindo. O sono de uma pedra não aprisiona nada; mas o sono humano não é eterno, está sempre prestes a cessar. Digo que é preciso começar por despertar absolutamente para ter direito depois ao sono da pedra, transmutado em consciência universal.

Será preciso que o homem se deslumbre com um "Não!" de fúria, e que o fogo dos "por quês?" lhe queime a garganta. Será o despertar. As escamas cairão dos olhos que verão então todas as tiranias.

Ao homem que pensa as tempestades da dúvida, e os blasfêmias e o petróleo para os templos, a ele o martelo do iconoclasta para a face cega da razão, a velha linguagem violada, suas fórmulas pulverizadas e as palavras lançadas a todos os ventos: "colocar tudo em questão"; toda lógica rejeitada, por que não crer no desrazoado? Já que todas as razões para crer são vãs, por que não crer no insensato? Todas as superstições, todas as magias poderão crescer nesse espírito devastado, sobre as ruínas do antigo Discurso. Dialéticas maravilhosas florescerão, germinadas de sementes artificiais, fabricadas peça por peça segundo o puro arbítrio. Num lance de dados, construirá uma metafísica pela qual se fará queimar vivo! Oh! enfim todas as loucuras, lançadas cegamente aos mil ventos da dúvida!

O homem age. A ele o desejo devastador da liberdade, e os fuzis apontados para os guardiães da ordem; o incêndio e o terror, e o sangue que corre mais rápido que as lágrimas. Ingênuo como o vulcão. Todas as violências, soltas pelo menor pretexto. Cada homem se torna um ciclone, um cruzamento turbilhão de forças naturais; não se reconhece mais, não! mas desperta. Será um deixar-se ir desesperado, nesse súbito deslumbramento. O homem faz a luz batendo por toda parte, nos crânios dos opressores de seu corpo, de seu coração, de seu espírito, nos quartéis, nas igrejas; ele faz a luz, não a vê ainda, que importa? Deixou de afundar-se no sono de todo consentimento, ele se revira, se revolta. Disse: "Não!", explode.

Há certamente na revolta a satisfação de uma necessidade de violência, contida por muito tempo pelas mãos de ferro da sociedade; dir-se-á que a revolta persegue ao menos esse fim, e que o desejo de liberdade é a si mesmo seu próprio objetivo, já que nenhuma parada é aqui possível; parar seria deixar que novas correntes se estendessem.

Mas a energia liberada pela revolta não é inesgotável; o fenômeno fisiológico da fúria está sujeito às leis da fadiga e da velhice. Se o revoltado continua a viver, se consegue escapar das mãos dos defensores da ordem estabelecida, de suas próprias mãos também, que, voltadas contra si mesmo pela coerção externa, tendem a completar seu desespero no suicídio, chegará um momento em que se verá morrer a violência de seus músculos, dissolver-se em seu rosto a máscara da cólera. É aí que o espreito. Só se pode apostar num homem a partir desse ponto.

Se ele para simplesmente, cai de volta na ordem, não me interessa mais; prova assim que sua revolta não ultrapassava os limites da fisiologia. Mais tarde, talvez, não é totalmente impossível vê-lo romper ainda uma vez com o novo equilíbrio em que se deixou imobilizar; mas se é para passar a vida em impulsos de revolta quebrados e retomados alternadamente, não está menos morto aos meus olhos. Chegado ao ponto crítico da revolta, o homem atingiu o teto do "animal sociável"; as leis da vida orgânica se opõem a que um ser possa viver um tempo apreciável insurgido contra toda organização; entre a destruição violenta, imposta a seu corpo pelos outros ou por si mesmo, e o abandono passivo e covarde, o caminho livre que se oferece em terceiro é bem estreito. Se o homem o encontra, romperá esse teto onde morrem tantas revoltas; os outros, se não se quebram de uma vez, ricocheteiam para baixo como balões de borracha, sobem e recomeçam, com muitas chances de se imobilizarem um dia ou de estourarem e caírem, peles flácidas lamentáveis — e dorme-se tão profundamente colado sem movimento ao teto quanto estendido inerte no chão —; em todo caso, o revoltado que não pode ultrapassar esse ponto de instabilidade, essa suprema prova, é um homem acabado, bem acabado, em todos os sentidos dessa forte expressão.

Mas o outro! Que força milagrosa nele, e como nomeá-la?, que força concentrada em seu germe essencial, subsistindo vitoriosa do dilema, mesmo quando se esvaneceu a revolta visível! Força da qual a revolta era apenas a manifestação biológica por um momento particular, o momento propriamente humano.

Ele sabe que não buscava sua felicidade, nem a da humanidade, nem a satisfação de qualquer desejo; não ia a nenhuma utopia, a nenhum paraíso terrestre; agora não deseja nenhum céu, nenhuma felicidade transumana; e isso o distingue ainda de muitos revoltados de ocasião, que, cansados, se consolam com promessas divinas. Mas ele, lançado sem nenhuma esperança finita, sem limite a sua esperança, ainda agora prossegue sua corrida. O insatisfeito desesperado por se satisfazer — é ele — só tinha trazido por acidente a máscara da revolta; pode doravante mostrar qualquer aparência. Uma vez percorrida a porção visível de sua trajetória revulsiva, ele ainda voa, e duvida-se ver em seus olhos essa estrela quase invisível que foge ao infinito; seu corpo encontrou talvez o equilíbrio entre os corpos, mas é mal dito: pois esse corpo, em que o concerne mais que qualquer outro? Ele não é mais esse corpo, que um artifício de nosso pensamento faz existir separadamente e como indivíduo.

Esbocei o caminho que une dois limites extremos e dá, nisso, um primeiro passo na ciência descritiva das formas a priori do progresso espiritual, que é a Metafísica. No começo está posta a constatação do Escândalo universal; a consciência, ao despertar, encontra o Absurdo como única evidência. Daí, no domínio do saber, uma crítica de todos os nossos conhecimentos, feita em nome dessa intuição primitiva do absurdo. No domínio da ação, uma atitude de revolta absoluta contra todas as forças de inércia ontológica, contra todos os mecanismos, todos os costumes, regras de ação, leis morais, que, desenvolvida, levaria a um niilismo integral, a um desencadeamento de todas as forças destrutivas. Essa atitude, repito, deve ser posta como um caso-limite. A contradição que ela encerra, como toda noção tomada absolutamente e isolada de seus correlatos, levaria o homem revoltado direto ao suicídio. No entanto, ninguém pode pretender a um progresso real se não é capaz de efetuar em si essa atitude inicial; o homem que quer ser deve primeiro sentir em si esse violento movimento de retorno contra a corrente do sono e da preguiça mortal humana, essa revulsão de todas as suas tendências; deve mesmo ter começado a deixar guiar suas mãos pela tempestade de todas as potências de destruição; esse momento, correspondendo frequentemente à idade da adolescência, é o da anarquia total em todos os domínios: na ordem social, gostos de niilismo, de terrorismo; na ordem biológica, é a porta aberta a todos os instintos destrutivos, a todas as formas e derivados do impulso ao suicídio, gosto pelas mutilações voluntárias, pela destruição lenta do organismo pelas drogas, pela auto-castração; todas essas tendências, cujas raízes profundas são também as das tendências contrárias, ligadas correlativamente a elas pela dialética imanente da natureza, se encontram postas a descoberto e coordenadas pela atitude central de revolta, de reviravolta, que faz delas, por esse momento, manifestações do despertar da consciência.

O homem que vive a verdadeira vida deve sentir, virtuais nele, todos os grandes revoltados da lenda e da história; irmão dos Sade, Lautréamont, Rimbaud Rimbaud Jean Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891) , que reconheça por ancestrais os Asuras e Râkshasas, os Nephilim, os Titãs e Gigantes, os anjos rebeldes e o Lúcifer das mitologias hindu, judaica, greco-latina e cristã; que seja em potência Prometeu, Caim, Nemrod, Satanás, que seja o revoltado contra tudo — esse tudo que resume o nome de Deus —, que é chamado também Maldoror, na mitologia de nosso século, para alguns. Aliás, todos esses grandes nomes, adorados e malditos, são as representações, na consciência coletiva onde a metafísica se torna mitologia, do momento dialético que é a revolta absoluta. Adorados e malditos são; pois a revolta é o despertar, a ascensão à consciência, único Bem de todos os bens, para quem só o Bem é bem; mas ao mesmo tempo despertar diante do Duplo, do Contraditório, do Absurdo, consciência contendo o germe de sua própria morte; ruptura violenta com o inerte, com a morte espiritual, mas também com a unidade primitiva, que se quebra ao despertar; e primeiro ato de uma série indefinida de contradições perpetuamente renascidas, e intimação para o homem de recomeçar sempre o esforço terrível de despertar, se não quiser voltar ao nada; pois assim, ao se apreender no ato de revolta, o homem mesmo se fez o presente irremediável, para sempre, enquanto for homem, da Distinção do Bem e do Mal; e é ele mesmo, eternizado nesse ato primordial, que chama Prometeu e Lúcifer.

O ato de revolta, em essência, é negação; inicia um processo dialético cujo termo é o estado-limite da consciência se apreendendo como negação absoluta, e separada integralmente das coisas negadas. Mas o Eu que se põe assim sem nenhuma outra determinação que a negação de toda determinação não pode mais ser dito individual. Esse momento da consciência coincide com o Deus da "teologia negativa" de Plotino, mas com Deus tomado sob seu aspecto exclusivamente transcendente, rigorosamente separado de tudo o que pode receber algum predicado positivo; é por isso que não se pode mais dizer que tal corpo, que tal individualidade humana pertença a essa consciência; ao renegar seu ser corpóreo e seu ser social, ela tinha dado lugar à manifestação visível da revolta; esta esgotada, o mesmo processo de renegação indefinida prossegue, invisível.

Esses dois estados-limites, o desencadeamento no indivíduo de todas as forças destrutivas, e a imóvel e absoluta negação de tudo por um não-individual, são dois pontos metafísicos servindo de marcos extremos para o desenvolvimento futuro de toda revolta. Sobre a linha que determinam, podemos inscrever o curso particular de tal ou tal revolta concreta.

É sobre essa trajetória que, particularmente, podemos observar a passagem do espírito de revolta ao espírito revolucionário; a revolta, em seu estado primitivo de niilismo, encerra, vimos, contradições que a impedem de ser viável: o indivíduo, que, enquanto indivíduo, se insurge contra o indivíduo, vai necessariamente para sua própria destruição. Para sair dessa contradição, deve compreender que o que quer negar e combater são todas as tendências de morte, todas as forças de inércia do espírito; e que deve combatê-las em nome de algo que ultrapasse seu próprio indivíduo, se não quiser combater a si mesmo. Esse supra-individual, encontrará primeiro em sua consciência de ser humano, e consequentemente na consciência da humanidade enquanto ela desperta. E como esse despertar, dissemos, corresponde à sublevação da parte oprimida da sociedade, o revoltado deverá resignar sua revolta individual nas mãos da classe revolucionária de sua época.

E essa luta revolucionária, que não deve cessar antes de ter realizado seus fins, terá sempre a seu serviço todas as potências despertadas pelo ato de revolta primitivo, mas domadas e dirigidas.

Tal é o campo visível da revolta e de sua transmutação social. Mas o ato pelo qual um homem, se negando como indivíduo, toma consciência de ser um humano, esse ato de ascese deve repetir-se e prosseguir sem cessar, conduzindo a consciência sempre mais perto de sua liberação completa de toda forma, no Universal. A atitude revolucionária é portanto um momento desse trajeto ascético, momento que pode durar toda uma vida humana. E quero ainda mostrar por aí que a Metafísica, antecipação de um progresso possível, seria vã e estéril se atos concretos não viessem dar-lhe sentido e vida.

Que nunca se esqueça o grande Riso negador escondido sob todas as transformações da revolta. No absurdo mesmo do desespero, que, com as armas da cólera e da violência, se mata enfim a si mesmo, ele se faz ouvir, esse riso cruel. Está subentendido por trás do borbulhar de toda revolta em ato. Que a aparência humana se torne mais calma, e o ricto se desvela. Não, nos gestos mais furiosos, ou mais friamente desesperados, e mesmo na revolta mais calculada, nada deixou de ser visto como absurdo. Não se trata de alegria, existe também um riso do horrível.

Só se descobre a si mesmo negando-se. A revolta é apenas o aspecto mais visível da negação absoluta; por ser um momento particular, não deixa por isso de necessariamente se realizar.

Nego sempre que eu seja o que creio ser. Se não risco mais me crer sem discussão, e ingenuamente um ser humano, minha revolta humana está cumprida. Ela passa, de certo modo, para outro mundo invisível.

Mas toma cuidado. As provocações do absurdo e do sofrimento te despertaram. Tu te revoltaste. Te pensas como negação absoluta, e tudo o que existe te é estranho. No curso de uma série indefinida de mudas, abandonaste tuas peles sucessivas no domínio estendido da natureza; (natureza, é tudo o que tem forma, tudo o que é objeto; tudo o que é forma em teu espírito, como as formas do conhecimento, estão portanto também bem nessa natureza renegada.)

Mas o que existe, por que existe assim, por que o mundo não é qualquer? Renegado por mim mesmo, é-me incompreensível. Por que ainda o particular, oh! por que sempre essa flor, tal e tal em seus detalhes? Não fui eu que quis isso! Por que esse arbítrio? Encontrei a pureza absoluta de minha essência, da Essência, mas esse mundo? O que é? Esse Exterior do qual me separei por um divórcio absoluto, é, não mais apenas um cadáver absurdo e indiferente, mas uma Existência terrificante e incompreensível. É a angústia de não poder tudo reduzir à pura apreensão de mim mesmo. O Riso aqui toma o acento da loucura.

De novo o absurdo e o sofrimento! Tudo está por recomeçar? Sim, o ato de despertar deve sempre ser recomeçado. Mas esse momento da Separação absoluta é um primeiro passo. Como todo momento da evolução espiritual, apresenta duas faces opostas: uma face de consciência, na medida em que é apreensão da pura Essência negadora; uma face de sono, se quiser considerá-lo como um estado definitivo, e nele repousar. O caminho da experiência metafísica está marcado por tais Janos Bifrontes. É preciso descrever este.