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Graal – Ermitas (Buescu)

domingo 27 de abril de 2025

Buescu, 1991

No contexto das duas novelas arturianas sobre que nos debruçamos, os seus heróis (Perceval e Galaaz) definem-se como heróis itinerantes, isto é, em permanente passagem. De certo modo, têm o seu contraponto na figura do(s) ermita(s), sedentário habitante de uma ermida ou de um ermitério. Assim, os cavaleiros vão deparando passo a passo com essas personagens ambíguas e por vezes inquietantes, que parecem deter o saber e possuem também muitas vezes o dom profético: representantes, no universo romanesco, do poderoso movimento espiritual que foi o monaquismo medieval.

É relevante sublinhar a observação de Jean-Charles Huchet ao notar a introdução do ermita no universo romanesco, precisamente através do romance bretão e dos outros tipos de romance medieval, nomeadamente a canção de gesta. Nesse sentido, aquele autor afirma:

Desde cedo uma figura literária, o eremita habita, desde o século XII, todos os gêneros narrativos em língua vernácula: a chanson de geste, o lai, o fabliau; ainda assim, permanece essencialmente um personagem romanesco. Devemos ver nessa presença contínua um reflexo do desenvolvimento do movimento eremítico no Ocidente medieval que, após a reforma gregoriana, expressou uma exigência espiritual maior? Paradoxalmente, o número de eremitas cresce no romance (o Lancelote em prosa conta não menos de vinte) justamente no período (início do século XIII) em que o movimento eremítico começa a declinar, dando lugar a outras formas de espiritualidade mais adaptadas ao crescimento urbano, cujos principais propagandistas foram as ordens mendicantes (franciscanos e dominicanos). Assim, é à história e aos textos onde os eremitas aparecem que se deve buscar as razões para sua ascensão romanesca. Perdido na solidão da floresta, o eremita intercala seu diálogo contínuo com Deus com um trabalho de cópia, imposto pela regra de São Bento sobre o trabalho manual. Homem de oração, o eremita também é o homem do livro e da escrita—mas não de uma escrita a ser entendida apenas em seu sentido material, e sim no de concepção e realização da obra na qual ele se manifesta.

No texto português, o que nos parece significativo, surge no entanto uma figura singular de ermita, aquele que, por amor a Galaaz, se torna também itinerante e o acompanha desde a partida do jovem cavaleiro para Camaalot; desempenha ao mesmo tempo o papel de pedagogo, o que, de certo modo, confirma as observações supracitadas de Jean-Charles Huchet, relativamente ao poder sobre a escrita memorativa:

“Sem falha, o irmitam andava sempre após êle, quando longe e quando perto, e contava-lhe cada dia as vidas dos padres santos e as estórias antigas”.

Trata-se, aliás, de um aspecto que já tivemos ocasião de referir no esboço de comparação que apresentámos da Queste e da Demanda: o ermitão «sobejo amava Galaaz» e propõe-se «pôr em escrito tôda las maravilhas» da demanda. É também ele que apresentará Galaaz ao Rei Artur como cavaleiro desejado e se instaurará como testemunha e narrador das aventuras da Távola Redonda.

A presença do ermita-pedagogo e relator dos feitos de Galaaz é, no entanto, um caso singular já que a figura do ermita aparece tanto no texto de Chrétien como no da Demanda sobretudo como o habitante solitário de deserto ou da floresta, num cenário ambíguo em que o único dado fundamental é a solidão como fonte de saber. É por isso que é Gorneman de Gorhaut que faz a Perceval a grande revelação do que é e como deve ser mantida a Cavalaria.

Ele disse: Com esta espada que lhe entrego, confiro-lhe a ordem mais elevada que Deus criou no mundo. É a Ordem da Cavalaria, que não admite nenhuma indignidade. Belo irmão, lembre-se, se tiver que combater, que, quando seu adversário vencido clamar por misericórdia, você deve acolhê-lo com compaixão e não matá-lo.

Não fale demasiadamente. Quem fala demais pronuncia palavras que se voltam contra si em loucura. Quem fala excessivamente comete um pecado, diz o sábio. Peço-lhe também: se encontrar alguém em dificuldade, sem socorro, seja homem ou mulher, órfão ou dama, ajude-o se puder. Você estará fazendo o bem. Por fim, há outra coisa que não se deve esquecer: vá frequentemente ao mosteiro orar ao criador de todas as coisas, para que ele tenha misericórdia de sua alma e, neste mundo terreno, o guarde como seu cristão.

É de resto também junto de um ermitão que Perceval expiará durante cinco anos até atingir a perfeição.

Na Demanda, e tratando-se de um texto extremamente complexo e repleto de sobreposições e contaminações, multiplicam-se os encontros com os ermitas que são, ao longo do percurso dos cavaleiros, instrumentos de arrependimento, penitência, revelação dos mistérios e sabedoria. O que nos parece significativo é que esses ermitas habitam a floresta, que constitui de certo modo o centro do imaginário do Ocidente.