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Daumal (RDBh) – Origem do teatro de Bharata

terça-feira 23 de julho de 2024

(RDBh)

O texto. — O Nātya-Śāstra de Bharata é o mais antigo tratado de arte dramática hindu. Nātya significa inicialmente dança e representação mimética, mas o teatro hindu, desde sua origem, é a arte total. É dança, mímica, música, canto, poesia, arquitetura, encenação e até pintura. Em todas essas matérias, o Nātya-Śāstra é a primeira autoridade, por ser um saber tradicional; recebe até o nome de Quinto Veda.

Entende-se por saber tradicional (veda, vidyā) um corpo de doutrina que desenvolve o sentido do Veda originário sob um ângulo particular, sem perder de vista o fim último que é o conhecimento; esta última palavra, aliás, serve apenas para velar um vazio em nosso pensamento, e cabe a cada um de nós preenchê-lo. Desde a metafísica e a dança até o adestramento de elefantes e a mecânica, todos os corpos de doutrina, entre os hindus, estão ligados por esse fim último que têm em comum, seja ele chamado liberação, conhecimento ou unificação; ao aprender arco e flecha ou gramática, pode-se aprender a conhecer a si mesmo.

Os hindus pouco se importam com cronologia, se atribuem ao Nātya-Śāstra uma altíssima antiguidade; entendem com isso principalmente uma proximidade espiritual com o ensinamento do Veda. De fato, a compilação se estende sem dúvida por vários séculos, e certas passagens parecem ter sido interpoladas ou revisadas em época bastante recente. Mas a maior parte do livro, e a mais importante, é certamente muito antiga. Todos os outros tratados de arte dramática e poesia citam Bharata, e ele mesmo não cita nenhum. Bharata, ao contrário dos autores posteriores que usam amplamente do "exemplo clássico", não cita nenhuma peça escrita. O "Teatro" de que fala não é o gênero literário que, posteriormente, usurpou esse nome; era ainda ação, exercício e rito, muito mais que representação. A linguagem, simples e concisa, bem martelada, versificada com fins mnemônicos e muitas vezes com rimas forçadas, carece dos ornamentos preciosos ou barrocos do sânscrito posterior; mas o vocabulário técnico abunda em palavras prácritas e dravídicas, e estas podem sugerir uma antiga tradição teatral pré-ariana, talvez a que ainda subsiste hoje em certas regiões do sul da Índia. Notemos ainda a tendência śivaísta do Nātya-Śāstra e a ausência de qualquer indício que permita considerá-lo posterior ao budismo. O tratado parece, portanto, posterior aos antigos épicos e anterior em pelo menos quatro ou cinco séculos à nossa era; é muito vago e, aliás, pouco útil.

O texto, transmitido oralmente, só foi posto por escrito em época bastante recente. Tomei como base o texto estabelecido por Joanny Grosset segundo os principais manuscritos conhecidos; é, aliás, a única edição europeia, e prestou grandes serviços até aos eruditos hindus. É lamentável que tenha ficado inacabada.

O autor. — A palavra bharata já é empregada no Rig-Veda como epíteto ou aposto a Agni (o Fogo). Segundo Paul Regnaud, teria ainda ali seu valor etimológico de "portador" e designaria o fogo sagrado como portador da oferenda, os "cem filhos" de bharata sendo uma metáfora para as múltiplas chamas do fogo sacrificial. Para outros, o bharata védico já teria o valor de um nome próprio, o de um dos chefes dos conquistadores brancos da Índia (antigamente chamada "terra dos Bharatas"), e o "fogo Bharata" seria o culto particular da tribo ou família bharata. Por fim, expressões como "vindo de bharata" são comumente usadas para designar um bardo ou ator; isso significaria que vem da terra dos Bharatas ou que é afiliado à tradição dramática de bharata, não sabemos. Não é impossível que, por um desses cruzamentos etimológicos frequentes em sânscrito, as palavras "bharata, bharático" tenham ao mesmo tempo guardado uma lembrança de seu sentido original, sendo o ator definido também (Sāhitya-Darpaṇa, etc.) como "aquele que porta em si (que assume) a natureza individual do personagem que representa"; é portador de seu papel e do "sabor" poético, assim como o fogo é "portador" da oferenda. Em suma, é preciso ver no nome bharata uma etiqueta mítica e simbólica, resumindo sem dúvida uma tradição de escola particular, e nenhum jornalista da época nos transmitiu o nome dos cigarros preferidos de bharata, nem de seu esporte favorito, nem se era do Instituto.

A doutrina. — Entre as escolas por vezes divergentes que se fundamentam na autoridade de bharata, do "Muni" como é frequentemente chamado, a mais abrangente é a chamada "do Sabor (rasa)". Sua doutrina é desenvolvida no Agni-Purāṇa, nos tratados de Bhoja, no Daśa-Rūpa e sobretudo no Sāhitya-Darpaṇa ("Espelho da Composição"), do qual resumo aqui algumas definições.

O Sabor. — A essência da poesia (incluindo o teatro) é o Sabor (rasa). Chama-se Sabor a percepção imediata, interior, de um momento ou estado particular da existência, provocada pela utilização dos meios de expressão artística. Não é objeto, nem sentimento, nem conceito; é uma evidência imediata, uma degustação da própria vida, um puro prazer de saborear a própria substância enquanto se comunga com o outro, o ator ou o poeta. O Sabor se diferencia segundo os estados ou modos de existência (Bhāvas) dos quais é a percepção "sobrenatural" e desinteressada. Tecnicamente, enumeram-se oito ou dez "Sabores" nomeados, por metáfora, segundo os sentimentos ou antes os regimes psicofisiológicos (Bhāvas) dos quais são as noções intuitivas: erótico, cômico, patético, furioso, heroico, terrível, repugnante, maravilhoso; além, em alguns autores, os Sabores apaziguado e familiar. Toda obra poética deve conter um Sabor dominante; os "Sabores mistos" caracterizam certos gêneros inferiores.

As Manifestações. — A palavra Bhāva (sentimento, estado geral) designa também o conjunto das Manifestações de cada um desses modos. Há, pois, oito ou dez Manifestações permanentes, constantes para uma obra ou personagem; são definidas pelo uso de tais ou quais meios de expressão (ver adiante); "manifestam" aos olhos e ouvidos o Sabor do poema e o suscitam no espectador. Em segundo lugar, trinta e três Manifestações transitórias exprimem todos os sentimentos e estados psíquicos incidentes que variam e matizam o Sabor fundamental; por fim, oito ou dez manifestações verídicas (como lágrimas, riso, suor) exprimem o sentimento dominante quando se torna forte o bastante para submeter o homem a ações fisiológicas que, por convenção cênica, fornecem sinais indubitáveis do estado interior do personagem.

Os meios de expressão. — O estado interior do ator é manifestado por quatro meios (abhinayās): gesto, voz, figurino e cenário, expressões corporais. À voz se juntam a música e o canto.

Os estilos. — Há quatro estilos dramáticos (vṛtti, lit. "modo, maneira de fazer"): a "maneira verbal", em que a fala tem o maior papel, adequada a temas religiosos e sentimentos calmos; a "maneira heroica" ou "grandiosa", adequada a temas épicos e guerreiros; a "maneira da cabeleira", maneira graciosa que toma seu nome de um gesto de Vishnu ajustando os cabelos após um combate, adequada a sentimentos amorosos; e a "maneira violenta" ou "fantástica", em que todos os tipos de artifícios cênicos são empregados, adequada a dramas mágicos, combates violentos e sobrenaturais.

As noções de Sabor, Manifestação, meio de expressão, estilo e outras ainda foram enumeradas, subdivididas, numeradas, etiquetadas com nomes de divindades e cuidadosamente classificadas pelos teóricos hindus. Essas classificações têm apenas valor mnemônico e são particularmente adaptadas ao ensino oral. O poeta ou ator que as domina pode assim, com um olhar interior, abarcar todas as possibilidades de seu ofício, e todo esse saber, aparentemente fastidioso e complicado, não tem outro objetivo que libertar o artista da pobreza das fantasias individuais.

A tradução. — Até agora, só foram traduzidos para línguas europeias alguns dos capítulos mais técnicos, e menos utilizáveis para ocidentais, do Nātya-Śāstra (exceto alguns fragmentos deste primeiro capítulo traduzidos por Sylvain Lévy em Le Théâtre indien com o único propósito de evidenciar a "piedosa credulidade dos indianos" (mas, diz ele, "a crítica europeia não poderia se contentar com isso"). Li e tentei traduzir este texto em um espírito totalmente diverso, pensando, à maneira dos orientais, que um texto é feito para servir o homem e não para escravizá-lo. Procurei, pois, extrair dele o máximo de sentido, sem hesitar em devolver seu pleno valor etimológico a certas expressões cujo significado certamente se enfraqueceu para o leitor hindu atual. O problema da tradução dos nomes mitológicos é quase insolúvel, sua solução dependendo dos conhecimentos e associações de imagens de cada leitor; assinalei nas notas cada caso particular, dando sempre a palavra em sânscrito. É lamentável que não possuamos o comentário de Abhinavagupta para os primeiros capítulos do Tratado.