Panofsky: Dürer - Morte de Orfeu

Um   desenho também datado de 1494 e de caráter igualmente mantegnesco representa a Morte   de Orfeu de acordo   com a versão ovidiana. Mostra como o grande cantor foi morto pelas mulheres da Trácia por ter introduzido em sua terra o vício da pederastia. Ilustrações anteriores desse incidente na arte   do norte retratam a punição e o pecado   (que Dürer   apenas indicou por meio de uma inscrição direta). Mas enquanto uma imagem   como a xilogravura da Ovide Moralise de Colard Mansion de 1484 nos parece quase cômica por falta de expressividade e concentração dramática, o desenho de Dürer, executado apenas dez anos depois, tem a força de uma tragédia   clássica. A xilogravura, que ilustra uma complicada alegoria   moral   sobreposta a uma história   de paixão e crueldade, mostra Orfeu duas vezes: abraçado a uma "damoiseau" e rigidamente deitado no chão, com a serpente   já roendo sua cabeça e sua lira flutuando no rio Hebrus. As mulheres trácias, no entanto, vestidas com os trajes dos burgueses de Bruges, continuam a atirar pedras em seu cadáver. No desenho de Dürer, a cena é interpretada de acordo com a fórmula clássica que foi revivida por Mantegna em um afresco na Camera degli Sposi em Mântua — o mesmo local onde a Favola d’Orfeo de Politian teve sua "estreia mundial" alguns anos antes. As mulheres estão vestidas com cortinas esvoaçantes que acentuam a beleza   vigorosa de seus corpos, e elas irrompem sobre suas vítimas com a fúria de verdadeiras mênades. Orfeu, vivo e sofrendo, luta   em vão para se proteger, com sua forma   ajoelhada exibindo aquele belo contrapelo que a arte clássica empregou para os inúmeros heróis   e guerreiros que morriam em batalha. Seu livro   de música, suspenso em uma árvore   à moda dos votos rústicos dos bucólicos gregos e romanos, lembra a canção de alguém que não cantará novamente: "hie arguta sacra pendebit fistula pinu". O protótipo do desenho de Dürer chegou até nós apenas em uma gravura ferrarense de qualidade bastante inferior, e é possível — embora não muito provável — que Dürer tenha tido acesso a um modelo mais satisfatório. Mas mesmo um desenho ou gravura original de Mantegna não poderia ter mostrado uma animação tão apaixonada no contorno e na modelagem, um horror tão profundo no rosto do sofredor e tanto caráter individual nos troncos retorcidos e na folhagem eriçada das árvores. (PanofskyDurer)