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Essais et notes II
René Daumal – Avesso da cabeça
Les Pouvoirs de la Parole
segunda-feira 30 de junho de 2025
Da cabeça onde acabo de entrar, vou tentar descrever o que percebo. Há uma parte mais mole, perfurada de orifícios pelos quais posso ver, ouvir, cheirar, saborear, engolir, e que chamo de face ou frente, e uma parte mais dura, sem orifícios, que não vê, nem ouve, nem cheira, nem saboreia, e que chamo de crânio ou parte de trás. Por que estes nomes? Simplesmente porque os leio aqui em etiquetas, pois, entre a face e o crânio, está tudo cheio de etiquetas, e posso ler nelas as denominações de todas as coisas perceptíveis.
De acordo com as placas que estão lá, no meio da cabeça, toda esta maquinaria serve para pensar. Pensar, ela pode. Mas pensar em quê? Isso, não é ela que pode decidir.
Quem então decide? Eu? Quem, eu? Aprisionado lá dentro, sinto minha pele do meu rosto, com meus olhos, meus ouvidos, minhas narinas, minha boca, que faz uma careta, minha careta. Uma outra face me faz sua própria careta, e eu retruco com uma nova careta que ainda é minha careta, e na qual se resumem todas as minhas pretensões, todas as minhas hipocrisias, todas as minhas conveniências. Um espelho se apresenta; a careta que ele reflete ainda fala na primeira pessoa, e ela não tem menos razão para fazê-lo. Diante de mim mesmo como diante de meu semelhante, eu me apresento com uma máscara. Se esta máscara é removida, atrás há outra máscara, e até camadas de máscaras, de maquiagens, de pós, de vernizes, de pinturas. Ora, o rosto mais feio ainda é mais belo que a mais bela careta. As estatuetas grotescas de Silenos continham um deus eternamente jovem; mas em nós a falsa cabeça contém uma outra falsa cabeça, que contém uma outra, e seria de desesperar, se não soubéssemos que alguns homens encontraram seu verdadeiro rosto. Tal como Sócrates. Tal como o sábio da escola Zen, que diz: « Não pense no bem, não pense no mal, mas olhe o que é, no momento presente, sua fisionomia original, aquela que se tinha mesmo antes de nascer. » O infortúnio é que « o momento presente » não existe para nós. Jamais deveríamos dizer: « eu sou »; mas no máximo: « eu era ». A este respeito, vou contar uma história.
A boca.
Eu descrevi os orifícios do rosto como aparelhos receptores de cores, sons, odores, sabores. Mas um desses orifícios serve ao mesmo tempo, como o dos zoófitos, para absorver e evacuar; não, é verdade, substâncias da mesma ordem: a boca absorve alimentos e evacua palavras. Os alimentos são pedaços ou sucos de plantas e de animais, frequentemente já um pouco degradados pelo calor ou pela fermentação, e algumas substâncias minerais, como a água ou o sal, e eles são destinados a nutrir o corpo, do qual a cabeça é a parte superior. Quanto às palavras que a boca excreta, são ou ruídos, ou gritos, ou sinais emitidos pelos milhares de animais que vivem aprisionados em minha única pele, mas que só têm um aparelho vocal à disposição para todos eles: de tal forma que do exterior, e mesmo do interior, se poderia acreditar que é uma pessoa que fala; e se acredita de fato.
Como se possui um franco no momento em que se o gasta, digamos para comprar um pedaço de pão, como se possui um pedaço de pão no momento em que se acaba de o digerir, assim se possui um saber no momento em que se o ensina. A abertura mais baixa do rosto serve então para absorver passivamente a comida mais grosseira, e para assimilar ativamente a comida mais sutil. Existe sobre isso um velho mito hindu, sobre o homem primitivo, que, depois de ter tentado com todos os seus outros órgãos de agarrar a comida (e cada vez ele só agarrava o aspecto correspondente da comida), conseguiu enfim agarrá-la pela excreção.
Frente e trás.
Quando eu ando, o espaço a percorrer está na frente, visível, e o espaço percorrido está atrás, invisível. Mas eu me desloco também no tempo; e, na duração, é o caminho percorrido, o passado, que é visível, e é o caminho a percorrer, o futuro, que é invisível. Vamos então no tempo de costas. Nossa face é cega para o futuro... Mas vou contar a origem de todas estas absurdidades.
Há cabeça grande e cabeça grande.
Aqui estão quatro objetos com cabeças grandes.
O alfinete, se se compara a grossura de sua cabeça ao resto de seu corpo, o alfinete tem uma cabeça muito grande, embora por cabeça de alfinete, pensando em um corpo humano, se queira significar uma cabeça bem pequena. O alfinete tem uma cabeça grande porque o homem a fabricou assim para poder empurrar em cima sem se espetar. A ideia do alfinete é exterior ao alfinete e, na verdade, se vemos este objeto com uma cabeça, é que figuramos toda coisa sob um esquema humano. Procuramos tudo dividir em cabeça, tórax e abdômen; frequentemente adicionamos membros e às vezes genitais. Mas, na realidade, um objeto pode ter sua cabeça fora de si mesmo, como a cabeça da mesa é o marceneiro, da locomotiva o maquinista.
O macrocéfalo tem uma aparência de cabeça grande porque na verdade lhe falta cabeça, e o osso e a água e a carne proliferaram no lugar da matéria cerebral deficiente.
O anjinho (digo anjinho e não anjo, pois os verdadeiros anjos, estes canibais lutadores, como os descreve o Antigo Testamento, não deviam faltar estômago), o anjinho tem uma cabeça grande porque... — isso, é um pouco complicado. Primeiro um teólogo de cabeça grande formou a ideia de uma pura inteligência, redonda, flutuante, assexuada e estéril. Depois um sub-teólogo de cabeça grande nem mesmo compreendeu esta ideia, e imaginou o anjinho moderno, segundo este mecanismo alegórico: espírito — sopro — bochechas — bochechudo, puro — limpo — sem intestinos — sem barriga, mensageiro — entre terra e céu — voador — alado, estéril — impotente — não malvado — infantil.
O girino, enfim, tem uma cabeça grande porque, como mostraram os embriologistas modernos, a cabeça é o organizador e o diretor do crescimento.
Entre os bípedes sem penas nos quais a cabeça supera o resto, e que nomeamos indistintamente de intelectuais, uns são análogos ao alfinete, outros ao macrocéfalo, outros ao anjinho, outros ao girino; para estes últimos, há alguma esperança de que se tornem homens.
Gênese da cabeça.
É indispensável aqui que eu lhes relate a gênese de nossa cabeça, tal como uma feiticeira da Tessália a contou ao sábio Oinófilo, que encerrou o relato em uma garrafa de vinho resinado onde, a pequenos goles, eu o reencontro aproximadamente.
Antes mesmo que os primeiros homens tivessem a figura descrita no Banquete de Platão, esféricos, acoplados barriga a barriga mas nuca a nuca, antes disso eles eram bem como Aristófanes, depois de uma crise de soluços e um bom espirro, os descreveu, exceto que eles eram acoplados no outro sentido, face a face. A cabeça era uma esfera fechada de todas as partes (exceto suas comunicações pelo pescoço com o resto do corpo), os olhos nos olhos e boca a boca no interior.
Esta cabeça, vendo interiormente na frente e atrás, via igualmente o futuro e o passado. Seu cérebro estava desdobrado para fora, e seus órgãos de percepção estavam virados para dentro. De fato, ao redor, o mundo inteligível era um imenso amontoado de matéria cerebral, e cada cabeça era uma bolha neste cérebro universal. Tudo o que chamamos hoje de « mundo exterior » estava concentrado entre quatro olhos, quatro ouvidos, quatro narinas, quatro lábios; ele existia subjetivamente para cada uma das inumeráveis cabeças. E o que chamamos de « mundo interior » existia objetivamente, o mesmo para todos.
As cabeças tiveram prazer em contemplar entre seus rostos os reflexos do mundo. Por este prazer, elas cresceram. No final elas se tocaram. O que se passou é bastante bem figurado nas fotografias reproduzidas por meio de uma trama: do branco
salpicado de pontos pretos, se passa pouco a pouco ao preto salpicado de pontos brancos. O cérebro foi encerrado nas cabeças, e os rostos se viraram para fora. Se poderia dizer também que o espaço se virou como uma luva; mas esta virada, efetuada em torno de uma superfície fechada, só é inteligível em um espaço de quatro dimensões, o que concorda aliás com o fato de que a cabeça primitiva, graças às suas duas faces, percebia o tempo de uma forma homogênea ao espaço. E isso explica por que, a virada efetuada, as faces se separaram e não puderam doravante perceber senão um tempo orientado: o tempo se tornou subjetivo e heterogêneo ao espaço. O resto da história, se pode ler no Banquete.
Eu quis falar somente da cabeça. Mas as outras partes do homem sofreram uma virada análoga. Mais simplesmente, um outro mito hindu conta: « O Ser-que-existe-por-si fez buracos para fora; é por isso que se olha para fora, e não para dentro de si. Às vezes um ser consciente, desejando o-que-não-morre, desvia seu olhar e o retorna para este si. »
Da relatividade da cabeça e dos tipos de rostos.
Dividimos tudo em cabeça, tórax e abdômen, porque a cabeça não existe absolutamente em si, mas somente em relação às outras duas partes. E o rosto, como frequentemente disseram os fisionomistas, se divide também em três planos superpostos.
Há rostos onde todos os órgãos sensoriais da face são puxados para baixo: o olho, o ouvido, o nariz, tudo está a serviço da boca, que ela mesma é apenas um orifício alimentar. São estes rostos que sempre fazem pensar em focinhos, morros, fuças. Há um outro tipo onde todo o rosto é como atraído pelo polo superior da cabeça; o olho, o ouvido, o nariz e mesmo a boca estão como suspensos à abóbada craniana, instrumentos do cérebro. É, por exemplo, o rosto de uma Minerva. Entre estes dois tipos extremos, se encontram todos os tipos de intermediários, apresentando traços contraditórios — tal órgão sensorial é puxado para cima, tal outro para baixo, tal outro para a frente ou para trás, ou bem todos se agrupam em torno de um órgão dominante, o nariz por exemplo — todos os tipos de rostos que se pode ver ao redor. Tal é o registro dos rostos naturais. Um outro tipo, muito raro e produto de cultura voluntária, é aquele onde todos os órgãos sensoriais estão a serviço de um órgão central invisível, de uma unidade interior: tais os rostos dos Budas tradicionais.
Nosso grande medo.
Assim que seus rostos foram virados para fora, os homens se tornaram incapazes de se verem a si mesmos, e é nossa grande enfermidade. Não podendo nos ver, nos imaginamos. E cada um, sonhando a si mesmo e sonhando os outros, permanece sozinho atrás de seu rosto. Para se ver, é preciso primeiro ser visto, se ver visto. Ora, há com certeza uma possibilidade para o homem de reaprender a se ver, de se refazer um olho interior. Mas o mais grave, e o mais estranho, é que temos medo, um medo pânico, não tanto de nos vermos a nós mesmos, mas de sermos vistos por nós mesmos; tal é nossa absurdidade fundamental. Qual é a causa deste grande medo? É talvez a lembrança da terrível operação cirúrgica que nossos ancestrais sofreram quando foram cortados em dois; mas então, o que deveríamos temer mais, é que, continuando a nos separar de nós mesmos por uma brilhante fantasmagoria, vamos nos expor a ser novamente cortados em dois — e é o que já acontece. Se temos medo de nos ver, é bem porque então não veríamos muita coisa; nosso fantasma tem medo de ser desmascarado.
É por medo desta horrível revelação que nos maquiamos e que fazemos caretas. E nossa cabeça, modeladora de máscaras e contadora de histórias, em vez de nos guiar para a verdade, se tornou nossa máquina de nos mentir. O latim dizia bem: mens, mentiri. E é notável que os franceses abandonaram sua palavra chef, que designava o condutor do corpo, pela palavra teste que significa « pote », na época justamente em que se começava a olhar mais do que nunca a cabeça como uma coisa para encher em vez de para fazer funcionar; na época também em que os rostos humanos, nas artes, cessaram de significar ideias para representar personagens.
Corpos sem rostos e cabeças sem corpos.
Os japoneses, que entendem de horror, não imaginaram, que eu saiba, nada de mais apavorante, entre todos os seus monstros, do que esta mulher que se deseja que nunca se encontre na beira do caminho; ela está lá, sentada, a cabeça em suas mãos, e quando se aproxima ela levanta a cabeça: se vê então que ela não tem rosto.
Um objeto que se vê distintamente não pode dar medo. É a ausência, ou o indistinto que dá medo. Fazemos sorrisos, dizemos uns aos outros « querido amigo », em sociedade, para não darmos medo, para não nos mostrarmos uns aos outros sem rostos. Temos medo de ter medo.
É também nos contos japoneses, eu creio, que se encontram estes tipos de vampiros que são cabeças humanas voando no espaço, e que à noite atacam como abelhas, com seus dentes ameaçadores. É preciso resistir a eles olhando-os de frente sem distração até a aurora, onde eles desaparecem.
Cabeças de cachimbo e outras.
Isso se relaciona ainda com o que dissemos, que percebemos toda coisa sob um esquema humano, tal como cabeça, tórax e membros, abdômen. Se um destes elementos falta, é que nós mesmos devemos supri-lo. Por exemplo, a poltrona, carregando sua barriga em quatro patas, me oferece seu peito e seus braços, e me convida a lhe emprestar a cabeça que lhe falta. O cachimbo é apenas uma barriga; nós lhe emprestamos nosso tórax, cujos movimentos alternativos atiçam o fogo que digere o tabaco, e lhe imaginamos, às vezes até esculpimos, uma cabeça — cabeça de zuavo, na maioria das vezes. Há poucas cabeças tão zombadas quanto as cabeças de cachimbo, e é justo; mas muitas cabeças humanas são apenas cabeças de cachimbo, cabeças puramente ornamentais, copiadas em modelos antigos e não tendo nenhuma comunicação com o torso e a barriga que as sustentam, — estas cabeças que a educação contemporânea se esforçou para nos esculpir.
Sobre esta triste constatação, vou lhes deixar. Devo agora tentar me informar sobre a maneira exata como Perseu conseguiu pegar o olho das Graias, e tentar resolver alguns outros problemas mitológicos deste tipo.
(1939.)


Ver online : DAUMAL, René. Essais et notes II. Les pouvoirs de la parole (1935-1943). Paris: Gallimard, 1993
DAUMAL, René. Essais et notes II. Les pouvoirs de la parole (1935-1943). Paris: Gallimard, 1993